O doutor foi
requisitado
quando a
professora disse
ter notado o
menino, nos dias
chuvosos,
bastante
hiperativo,
irritado com o
número quatro,
nervoso com a
hora do conto, e
em outros dias,
ensolarados,
muito distraído,
fitando o vazio
no teto, imune
até mesmo ao
fascínio do
computador...
Ela contou então
que, na
sequência, falou
alto, gritou
três vezes o seu
nome para chamar
sua atenção.
Inutilmente, era
um caso de
infância
perdida, ela
sustentou,
apoiado o
discurso técnico
pelo
coordenador.
E quem tivesse o
bom senso da
arte dos sonhos
também
acrescentaria à
sentença
descabida da
professora: “sim,
é a atração
pelas
brincadeiras que
quer tirá-lo
dessas paredes
sólidas que
ensinam a
marchar...”
O caso, com
sigilo, foi
relatado aos
pais pela
direção.
A mãe, um pouco
aflita, procurou
justificar a
atitude do
menino no fato
da pouca idade,
pois ele só
tinha cinco
anos... Quem
não se aborrece,
às vezes, com a
mesmice da
instrução, ou se
distraia por
resistir à
monotonia da
lição, voando
depressa para
um jardim
secreto para
descobrir, no
alto da árvore,
a pálida
crisálida, e que
um dia vai ser
borboleta?
O mundo da
fantasia não é
ponte segura...
Replicaram,
todavia, aos
pais que na
escola importava
o ensaio do
rigor, os pés
sólidos para
adentrar o
conhecimento das
coisas já
sabidas. E tudo
isso para não
correr o menino
o sério risco de
um futuro que se
abre para ser
desvendado, e o
perigo da
utopia!
Além disso, o
coordenador
emendou, certas
são as receitas
que já foram
testadas
diversas vezes.
Por isso, mesmo
na escola, até
por ser uma
bilíngue
certificada, o
tempo de brincar
é reduzido, pois
há um farto
cronograma a ser
cumprido.
O pai se
envolveu neste
ponto. Mas o
universo do
menino é ainda
muito pequeno,
ponderou. Não
vai muito além
de um breve
tempo pela manhã
e logo as horas
na escola. Não
seria melhor que
as brincadeiras
fossem
preservadas,
pois nesta idade
brincar não
significa
felicidade?
Nada deu muito
certo e os pais
se sentiram
acuados, pois
ficou claro que
o mundo da
fantasia não é
ponte segura
para uma pessoa
estar apta ao
mundo da vida
daqui a trinta
anos.
Sem revisar o
pacto
pedagógico, os
pais na semana
seguinte levaram
o filho ao
médico apontado
pela direção
escolar.
O doutor, sem
dúvida, depois
de apalpar o
corpo, auscultar
melodias,
nuvens, lagoa,
pedras e bichos,
pontes de
arco-íris na
cabeça da
criança,
sentenciou-lhe
uma camisa de
força química,
porque ele,
menino lúdico em
demasia, padecia
de transtorno de
déficit
de atenção e
hiperatividade –
TDHA!
Mas
metilfenidato
não é um
fármaco?
– indagou a mãe
nervosa ao
médico, que há
muito apagara da
memória aquilo
que o médico
Groddeck havia
dito um dia: “o
objetivo da vida
é ser criança”.
E o menino ficou
de novo
entediado
Despojado do
essencial, a
alegria de
viver, o doutor,
de maneira
objetiva,
explicou aos
pais o mapa de
sintomas [muitas
perguntas]
daquele menino,
evidenciado o
diagnóstico por
uma seca razão
branca. No fim
da consulta, voz
polida,
assegurou a eles
que a droga
corrigiria o
déficit
ajudando a
criança a focar
para reter
muitas coisas e
com eficácia.
Nos meses
seguintes, o
menino e sua
carne foram
submetidos à
mordaça química
que lhe faz
caminhar na
direção
indicada,
segundo um corpo
finito de
fantasias.
Não sei, mas com
ele se faz uma
metamorfose ao
contrário,
infelizmente
invisível aos
olhos do pai e
da mãe: o menino
de olhos
castanhos vive
agora agarrado
às coisas,
lagarta na
folha, fim da
infância.
Os pais, porém,
respiram
tranquilos,
apesar das
longas horas de
trabalho. E o
filho, sem fazer
perguntas, segue
em paz com a
escola.
Ganhou um trem
de madeira do
avô. Colocou-o
sobre a mesinha
de estudos.
Olhou para os
cinco vagões
coloridos, tudo
tão sem graça,
esquecido já de
imaginar. Nada
lhe provocou um
apelo curioso,
porque
precocemente
expulso do
paraíso das
brincadeiras.
E o brinquedo
assumiu na
estante um
segundo lugar.
Ei-lo na
sequência
entediado de
novo, pois
exiladas suas
ideias de
invenção. Virou
o menino outra
coisa. Aos cinco
anos e meio e
caminha, bem
contido, para o
mundo árido e
cinzento da
gente grande.
Epílogo
Ah, se o menino
pudesse... Se a
ele tivessem
outorgado uma
(justa)
defesa... Seu
advogado, um
escritor de
histórias de
fadas e lendas,
sem medo dos
monstros,
esclareceria que
a irritação é
atestado
legítimo, na
maioria das
vezes, da
incompetência da
escola, ou da
falta de alegria
que perturba
muitas vezes a
criança presa em
casa, entre
muros e TV. E a
distração, por
sua vez, é porta
que abre para a
semente da
novidade, que
cresce em outros
mundos, quase
sempre distantes
da mesmice da
instrução ou das
ciladas dos
sítios digitais.
Por fim a defesa
do menino
alegaria: e
esses mundos,
desabitados no
geral pelos
especialistas em
ferramentas do
saber, são
povoados pela
natureza lúdica,
tecida junto com
a inocência,
chave dourada
que mantém vivo
o estado puro da
infância. E, de
outro lado, a
infância nunca
deve, antes da
hora, ser
soterrada...
Quem assim o faz
merece, ao
menos, ser
proibido de
conviver próximo
ao prelúdio
sensível da
vida, à medida
que seu mau
ofício faz
sombra ao
direito de
brincar que
naturalmente
pertence a
qualquer
criança.
Algumas
reflexões
Este texto tem
um motivo:
disseminar a
reflexão sobre a
infância e o
consumo
indiscriminado
de
metilfenidato
(comercialmente
conhecido como
Ritalina), da
família das
anfetaminas,
prescrita para
adultos e
crianças
portadores de
transtorno de
déficit de
atenção e
hiperatividade (TDAH).
Essa droga tem
por objetivos:
melhorar a
concentração,
diminuir o
cansaço e
acumular mais
informações em
menos tempo.
Mas, como um
fármaco, ela
traz dependência
química, porque
tem o mesmo
mecanismo da
ação da cocaína,
sendo
classificada
pela Drug
Enforcement
Administration
como um
narcótico.
O Brasil,
infelizmente, no
momento responde
pela segunda
posição mundial
de consumo dessa
droga, figurando
apenas atrás dos
Estados Unidos.
No caso de um
diagnóstico de
TDHA, o que os
pais deveriam
fazer?
1) Buscar uma
segunda opinião.
E poderiam
considerar, por
exemplo, os
argumentos de um
pediatra
homeopata.
2)
Revisar/questionar
o projeto
pedagógico da
escola
frequentada pela
criança.
3) Refletir o
casal, ou o
responsável pela
criança, sobre
os hábitos
domésticos, a
situação da
criança em casa,
a ausência de
contato com
natureza/brincadeiras,
tempo dispensado
diante da TV
e/ou uso de
tecnologias
digitais...
Buscar apoio, se
for o caso,
junto a um
terapeuta
familiar.
A Ritalina e
suas
consequências
Adiro à crítica
implacável do
tratamento com
Ritalina,
conduzida pela
pediatra Maria
Aparecida
Affonso Moysés
(professora
titular do
Departamento de
Pediatria da
Faculdade de
Ciências Médicas
– Unicamp). Ela
diz: “Para
quem indica [ritalina],
é nos casos com
diagnóstico de
TDHA. Eu não
indico. (...) Se
não indico para
um neto, uma
criança da
família, não
indico para uma
outra criança.”
Além disso, ela
esclarece que a
“aparente calma”
promovida pela
droga em
crianças não é
resultado
terapêutico
positivo, mas
sim um “sinal de
toxidade”. Ela
explica ainda
que essa droga é
perigosa,
porquanto pode
causar
dependência
química e
sintomas como
cefaleia,
tontura e efeito
zombie
like, em que
a pessoa fica
quimicamente
contida em si
mesma. E na
opinião da
médica o que
vale é a
orientação
familiar.
Em entrevista
(Portal Unicamp)
é lançada a
seguinte
pergunta à
pediatra Cida
Moysés: “Quem
está sendo
medicado [com
Ritalina]? São
as crianças
questionadoras
(que não se
submetem
facilmente às
regras) e
aquelas que
sonham, têm
fantasias,
utopias... (...)
Com isso, o que
está se
abortando? São
os
questionamentos
e as utopias”.
(Cf. Moysés,
Maria Aparecida
Affonso (2013).
A ritalina e
os riscos de um
‘genocídio do
futuro’.
www.unicamp.br)
Vale a pena
assistir ao
documentário
Tarja Branca – a
revolução que
faltava.
Dirigido por
Cacau Rhoden e
produzido pela
Maria Farinha
Filmes, acende a
ideia de que a
brincadeira está
[em nossas
sociedades] em
perigo e, por
isso, é urgente
resgatá-la,
promovê-la e
para o bem/saúde
das nossas
crianças.
Fonte: Retirado de O Consolador uma Revista de Divulgação Espírita
Referências:
Breggin, P.
(1998).
Talking back to
Ritalin: what
doctors aren’t
telling you
about stimulants
for children.
Monroe, Maine:
Common Courage
Press.
Janin, Beatriz
(2002).
“Vicisitudes del
proceso de
aprender”.
Cuestiones de
infancia, n. 6,
Buenos Aires,
UCES.
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