Nunca mais
voltaram...
JORGE LEITE DE OLIVEIRA
jojorgeleite@gmail.com
De Brasília-DF
Conta-nos
o espírito Valérium que um cidadão filantropo, bondoso, mas cheio de cautelas,
antes de ajudar algum necessitado, foi procurado por uma jovem humilde e bem
vestida que lhe pediu, constrangida, ajuda para uma cirurgia urgente em cidade
distante e de maiores recursos. O homem prometeu ajudá-la, mas antes solicitou
uma sindicância sobre a real situação da moça. Cinco dias depois, soube que se
tratava de pobre viúva. Pediu-lhe, então, que procurasse um médico amigo, o
qual confirmou o diagnóstico e a necessidade urgente de cirurgia. O benfeitor
ficou satisfeito e se propôs a socorrer a jovem, mas antes, temendo mau juízo
dos vizinhos, julgou melhor esperar pela esposa dele, que voltaria de viagem na
semana seguinte. Com a chegada da esposa, dirigiram-se à casa da pobre viúva;
mas, ao chegarem lá, ficaram sabendo que ela falecera na véspera (VIEIRA, W. Bem-aventurados os simples. Ed. FEB,
cap. 35). Moral da história: ajuda que chega tarde é recusa.
Manoel
Bandeira disse, em seu poema intitulado O
bicho, que ficou chocado ao ver um bicho-homem catar comida entre os
detritos do pátio e devorá-la sem exame.
A
história, mais uma vez, se repete. Também eu, passando, hoje, por uma grande
lixeira com sobras de alimentos e detritos malcheirosos, localizada à frente de
alguns bares, observei não um, mas dois “bichos” revirando, catando e comendo
xepas que lhes pareciam reaproveitáveis.
Era
um casal jovem. O rapaz mordia vorazmente uma maçã e revirava o lixo, auxiliado
pela moça.
Nenhum
deles me viu, quando parei, poucos metros adiante, penalizado. Continuavam
remexendo a lixeira, em busca de mais comida, quando me materializei a sua
frente, tirei do bolso vinte reais e lhos ofereci. Agradeceram, comovidos, ao
me ouvirem dizer com minha boca de agênere1:
— Peguem o dinheiro e vão fazer um lanche saudável...
Afastei-me
dali sem olhar para trás; mas, enquanto andava, lembrei-me de outra cena
ocorrida há 120 anos... Deitado e abraçado em banco de mármore, à frente de
minha casa no Cosme Velho, imaginei ver um casal de crianças. Pareciam dois
anjinhos, belos e sujinhos, descalços e maltrapilhos, que sonhavam com um
banquete no céu. O que a mim me parecia linda menina de cabelos longos, muito
pretos, descobri, mais tarde, ser o menino de seis anos abraçado ao irmão de oito
anos.
Penalizado,
aproximei-me e perguntei-lhes o que faziam ali, dormindo abraçados, às 9h da
manhã, quando o sol já se fazia forte. Respondeu-me o mais velho que ali
estavam desde a noite anterior, quando sua mãe os deixara e voltara ao morro da
Penha, onde os três moravam em pequeno barraco. Era costume daquela mãe usar
suas crianças para esmolarem diariamente. Se nada conseguissem, tinham que
dormir na rua... Então, levei-os a minha casa.
Ali,
constatei a ausência de Carolina e, sem pensar no mau juízo que poderiam fazer
de mim os vizinhos, pedi às crianças para se banharem, enquanto eu preparava um
lanche para ambos, que comeram, depois, com muito gosto e gratidão.
Ali,
ouvi, do mais velho, narrações do “arco da velha”, tais como o hábito de ensacarem
e malocarem, em bueiros, dinheiro recebido; de fingirem-se de abandonados (e
estavam mesmo!) para receberem ajuda, etc. Com menos de dez anos, já tinham
vivido o que não vivemos durante toda uma vida...
Não
satisfeito, levei-os a uma loja de roupas infantis, comprei uma muda de roupa e
um par de calçado para cada um, dei-lhes algo mais que o dinheiro da passagem e
lhes pedi para voltarem outro dia, na companhia da mãe, e quando Carolina
estivesse em casa.
Dias
depois, as crianças voltaram a procurar-me, vestidas com as roupinhas novas,
mas sem a presença da mãe. Dessa vez Carola estava em casa e já sabia da
história. Foi ao encontro dos meninos comigo e lhes demos mais uma modesta
ajuda financeira... Agora, entretanto, Carolina, que trabalhava numa instituição
de assistência social, lhes recomendou pedir a sua mãe para levá-los lá, onde a
família seria convenientemente atendida e orientada...
Nunca
mais voltaram.
[1] Agênere: espírito
materializado, que se confunde com uma pessoa viva.
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