DERSU UZALA NA COPA
José
Ribamar Bessa Freire
22/06/2014
- Diário do Amazonas
No futebol
a bola é um reles, um ridículo
detalhe?
escreve Nelson Rodrigues, para quem o que interessa é
o ser humano por trás da bola
. O que está em jogo no gramado, portanto,
não é a diversão lúdica, mas a
complexidade da existência
. Se for assim, se Nelson tem razão como quer o cronista
Joaquim Ferreira dos Santos, então o campeão mundial da Copa já é o Japão,
que deu um show de vida lá na Arena Pernambuco contra a Costa do Marfim e,
depois, na Arena das Dunas, em Natal, contra a Grécia.
O Japão perdeu um jogo e empatou o
outro dentro do campo, mas nas arquibancadas ganhou os dois de 10 x 0. As
imagens reproduzidas nas redes sociais não deixam dúvidas. Enquanto
torcedores do Brasil e de outros países se retiravam dos estádios, deixando
montanhas de lixo,sem sequer olhar para trás, os japoneses recolhiam discretamente garrafas e copos de
plástico, papel, bandejinhas de isopor, latas de cervejas e de refrigerantes,
canudinhos, restos de alimentos, embalagens usadas, enfim todo lixo produzido
por eles.
Esse gesto civilizatório foi o legado mais eloquente da
Copa. Com o exemplo, o japonês ensina ao mundo como tratar com respeito e civilidade o espaço público, como
se relacionar com o meio ambiente e com os outros habitantes do planeta. A
coleta do lixo, feita em sacos com a imagem impressa do sol nascente, foi uma lição de ética e de cidadania. Lembrei cena antológica
de rara beleza do filme Dersu
Uzala dirigido pelo cineasta japonês Akira Kurosawa, em 1975, baseado no diário de um capitão
russo. Na torcida nipônica
todos eram Dersu Uzala.
O filme conta a história de uma
expedição científica do exército tzarista pela bacia do rio Usurri, entre
1902 e 1907, comandada pelo capitão Vladimir Arsenyev, com a finalidade de
classificar as espécies existentes nas estepes da Sibéria e realizar
trabalhos de topografia. O capitão faz amizade com um caçador nativo,
Dersu Uzala, um velho sábio que trata o sol, as estrelas, a água, o fogo, o vento, a
neve, as árvores e os animais como pessoas. Tal qual um tcheramoi
guarani, ele ouve todas essas
pessoas
que vivem na taiga siberiana
a maior floresta fria do mundo
e conversa com elas.
Akira Kurosawa vai mostrando como se tece a amizade do capitão
russo com o caçador, que lhe serve de guia não apenas pelas montanhas da
Mongólia, mas também pelos sendeiros da vida.
Depois de uma tempestade de neve, os dois conseguem se refugiar numa cabana
no meio da floresta, onde descansam. No dia seguinte, antes de partirem,
Dersu, o homem da floresta, abastece o fogão com lenha, separa um pouco de
sal e estoca alimentos não perecíveis na cabana. Divide assim o pouco que tem
para surpresa do capitão russo, o homem da cidade, que lhe diz:
- Dersu, isso é um desperdício. É inútil deixar
mantimentos aqui, nós nunca mais voltaremos a esse lugar.
Quase todo semestre passo esse filme em sala de aula e
todas as vezes me comove a cena, quando o caçador, então, explica que não é
para eles dois, mas para uma pessoa qualquer, um eventual viajante,
desconhecido, que chegue ali cansado e com frio, em busca de abrigo, de calor
e de alimento. Compartilhar o pão não necessariamente pararetribuir o que eles tinham encontrado, mas pelo prazer da
partilha.
O capitão russo, um homem de ciência, civilizado, com
escolaridade, fica no meio do tiroteio, perplexo e dividido entre, de um
lado, o princípio da
farinha pouca meu pirão primeiro
que ele traz do mundo urbano e, de outro, o preceito do
pirão compartilhado, que é único sinal humano de vida, como canta o poeta
Aníbal Beça num haicai:
Apenas num gesto / o homem é capaz
de vida /
chibé repartido
.
A ética da solidariedade, do desprendimento, do pensar
no outro está presente tanto no comportamento do velho caçador
desescolarizado, que vive no mundo da oralidade e que detém os conhecimentos
da vida, quanto na coleta silenciosa do lixo realizada pelos torcedores
nipônicos.
O cineasta japonês Akira Kurosawa rodou as cenas de Dersu
Uzala em 1974, em condições adversas, depois de haver tentado o suicídio três
anos antes, cortando a própria garganta e os pulsos numa forte crise de
depressão. Estava desencantado com o ser humano. Nesse contexto, o filme teve
o efeito daquele poema de Allen Ginsberg: uma florzinha solitária
desabrochando em cima de um monte de merda. É uma reconciliação com a vida,
um canto de esperança, que desperta sentimento similar ao provocado pelas
imagens dos japoneses coletando o lixo no estádio.
- Eu sou bra-si-lei-ro, com mui-to or-gu-lho, com mui-to
a-moooor ? grita a nossa torcida embalada para a guerra. Resta saber
isso não é explicitado
do que é que sentimos orgulho. Numa sociedade patriarcal
como a brasileira, parasitária, tatuada por quatro séculos de escravidão,
estamos acostumados a emporcalhar tudo, ordenando que garis limpem nossa
sujeira. Nossas ruas com bueiros entupidos e os banheiros e salas de aula de
nossas universidades públicas são testemunhas disso. Lá, o exército do
pessoal de limpeza
trava diariamente uma batalha perdida, registrando o
rotundo fracasso da escola.
- Somos milhões em ação. Todos juntos, vamos pra frente,
Brasil. Salve a seleção!
De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo o Brasil deu a mão!
Sem patriotadas, o lema dos japoneses, talvez muito mais
significativo do que
não vai haver copa
, foi o silencioso
não vai haver lixo
. A corrente nipônica pra frente nos deu uma lição, que já
rendeu os primeiros frutos. Na Fifa
Fun Fest segunda-feira, em Copacabana, no Rio,
turistas alemães, espelhados no exemplo vindo do Oriente, não apenas
recolheram o lixo da praia, mas incentivaram outros frequentadores a
ajudá-los.
Esse gesto de extrema delicadeza e refinamento, embora
solitário, mostra que civilização não é abrir estradas, construir usinas,
erguer pontes e viadutos, fabricar aviões, automóveis e robôs, clonar seres
vivos. É saber se relacionar com o outro: gente, planta, animal, meio
ambiente. É a qualidade dos gestos que torna a condição humana possível.
Enquanto houver alguém juntando o lixo e nos deixando envergonhados de nossa imundície,
o mundo não está totalmente perdido. Uma florzinha brota no esterco.
Foi um ato singelo, mas que renova nossas esperanças na espécie
humana e no futuro do planeta. A bola, efetivamente, é um reles detalhe.
Torcida japonesa, por despertar o
Dersu Uzala que existe dentro de cada um de nós,domô arigatô gozaimasu.
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