Contos e crônicas
A
indígena menininha
CÍNTHIA CORTEGOSO
cinthiacortegoso@gmail.com
De Londrina-PR
Dily dançava sob os raios do pôr do
sol. Ela dizia que era seu agradecimento por mais um dia maravilhoso. Na aldeia
onde morava, todos agradeciam à natureza... o ar, a água, o fogo, a terra, as
flores, as folhas, a comida, os animais, a vida.
Os raios avermelhados do horizonte
para a menina, pensava ela, “eram o aconchegante abraço de Deus”.
Os pequeninos pés pisavam a terra e a
grama, sentiam a água do rio e as texturas das rochas e dos cascalhos. Seu
rosto recebia o vento formado de liberdade e paz. Seus olhos podiam apreciar as
cores e as suas inúmeras tonalidades. Seu nariz sentia os cheiros e reconhecia
cada um deles desde o início da primavera ao término do inverno.
Definia com precisão as folhas de
floresta ao redor da aldeia; conhecia cada pássaro ou animal de porte grande,
médio ou pequeno e ainda os nomeava. Os insetos eram muito observados pelos
olhos da menina e com aqueles estes muito aprendiam.
O olhar de Dily era meigo, amoroso e
atento. Percebia quando um animalzinho não estava bem ou uma criança estava
triste, quando um adulto estava preocupado com algum problema surgido na aldeia
ou se a observação eram apenas ações cotidianas em sociedade indígena.
Passou a interpretar para qual lado o
vento soprava, pois, dependendo da direção do sopro, podia ser chuva calma ou
até temporal. A cada nova descoberta, Dily amava e respeitava ainda mais a
natureza. A pequena indígena aprendia todos os dias. Mas ela não conseguiu
prever nem impedir a desventura ocorrida em sua aldeia: uma tempestade terrível
avassalou todo o lugar e sua família inteira não mais amanheceu no novo dia,
não somente os seus familiares, apenas Dily pôde abrir os olhos na manhã após o
dilúvio por se esconder dentro de um tronco de uma grande árvore.
E a indígena menininha estava só
naquela floresta com fauna e flora tão conhecidas, mas, ao mesmo tempo, numa
situação imensamente estranha: sozinha... e ainda tão pequenina.
Começou a observar o desastre no
local e seus olhinhos eram muito pequenos para suportarem as lágrimas de tanta
dor; a face morena dourada estava tão triste. A menina encontrou a sua família
em corpos sem vida, os amigos, os animaizinhos... mas dor sentida foi quando
encontrou o corpo de sua amada avó, sua melhor amiga, quem lhe ensinou quase
tudo que sabia, sinônimo de amor e de respeito. Dily ajoelhou-se ao lado, pegou
a mão, que tanto carinho lhe fizera, e beijou-a. Acariciava o rosto da índia
anciã e determinada, mas, também naquele momento, a menina pôde sentir a
delicadeza e a suavidade da senhora que somente um espírito em real progresso
poderia ter. E sua avó era assim.
Um silêncio choroso estava presente.
Dily procurou deixar o corpo da avó e os dos outros em uma posição mais serena
e isso foi trabalho para muitos dias. A menina procurou organizar a aldeia da
melhor forma, no entanto, reconheceu que não poderia ficar ali, não havia
condições em muitos sentidos, então, foi a alguns quilômetros à frente onde um
dia havia ido com a avó que lhe dissera que aquele lugar era muito abençoado e
profícuo. A antiga aldeia transformou-se num santuário para a menina e o tempo
foi indiscutível companheiro na vida da pequena indígena.
Com os meses avançados, Dily não
voltava diariamente para fazer a oração na antiga aldeia como fizera no início.
A cada novo amanhecer se lembrava dos ensinamentos da avó, como um deles era
preservar no coração, por meio do sentimento e pensamento, os que se ama, e
toda sua família indígena perdida no dilúvio se encontrava em paz e muito amada
no puro coração da menina.
Depois de muitos dias, Dily, numa
manhã dourada e de novo feliz, dançou sob os raios do lindo amanhecer, há
quanto tempo não fazia. Aquela dança, acompanhada de um tímido canto, era o
agradecimento pela vida, pois a menina podia ver a beleza da natureza, sentir o
vento fresco e puro, comer a comida natural oferecida, podia reconstruir uma nova
estrada a caminhar, uma nova alvorada para viver. E isso estava realizando
muito bem.
Até uma moradia havia construído com
muito cuidado e eficiência. Novos amigos animais já havia aos montes... e a avó
era presente em tudo o que a neta fazia. E em quantos entardeceres o rosto da
anciã se apresentava sorrindo para a pequena querendo dizer que a vida continua
e o sentimento atravessa tempo e plano e chega ao destinatário amado. E a neta
sorria para os olhos que a olhavam.
Conforme os dias se acalmavam, mas
trabalho sempre havia, Dily, mesmo com uma casinha bem arrumada, com sua horta,
algumas flores em volta, um novo ambiente aconchegante, comida fresca, tantos
amigos animais, ela era menininha... gente e desejava muito conviver com outras
pessoas. Nesse longo tempo após a grande mudança, Dily vira apenas duas
pessoas, uma única vez, um médico e um assistente que visitavam as aldeias
daquelas terras. Nessa ocasião, os dois quiseram levá-la para a cidade, mas,
com muita destreza, a menina indígena se embrenhou no mato e só voltou depois
de dez horas; eles já haviam ido embora.
Portanto, agora era Dily que queria
muito ver esses rostos dos quais já fugira. E os dias passavam.
E tantos dias transformaram-se em
meses, parecia que a menina havia sido abandonada. E após a única visita nem os
dois homens voltaram à aldeia como faziam. De certa forma, por observarem o
acontecimento na antiga aldeia e a constatação de única sobrevivente que
fugira, o local e a sua proximidade foram encerrados para a lista de visitas
que o governo mantinha.
Após quase dois anos de
acontecimento, Dily não tinha mais o olhar alegre, mas mantinha-o amoroso, era
o seu jeito. E a menina precisava de ajuda, aos poucos começou a adoecer. A
pequena indígena precisava de um abraço, do convívio com pessoas que lhe dessem
amparo e carinho... e a ausência e a saudade de quem amava e não mais podia
estar fizeram com que ela enfraquecesse e adoecesse.
Deitadinha em sua cama de um tipo de
capim seco, Dily ficou completamente esmorecida; sua respiração era fraca e seu
corpinho, tão frágil, ainda estava mais miúdo. E os olhos da avó viam tudo e
ela, configurada em outra dimensão, estava com tristeza ampliada sem poder
muito o que fazer, mas todo ser recebe auxílio onde se encontra, no tempo e na
forma adequados.
E a dificuldade da pequena
continuava, mas ao mesmo tempo o desespero não a detinha, pois bem no fundo de
seu coraçãozinho podia sentir a felicidade por reencontrar a amada avó ‒
aqueles sábios indígenas acreditavam na eternidade da vida ‒, mas outro
sentimento mais profundo tomou Dily: a valorização dos presentes dias. Sua avó
dizia que se os olhos piscassem havia energia para a conquista.
Uma suave névoa leve e completa de
bem-estar envolveu a pequena menina que não pôde observar muito menos
compreender o ocorrido no momento, porém, sua melhora foi crescente. Seus
olhinhos começaram a brilhar, suas mãos se aqueceram e também seus pés, todo o
corpinho recebeu a benéfica energia... como um renascimento.
A suave névoa era na verdade, espíritos
em socorro pela pequena, os respeitados ancestrais; a avó também observou o
amparo e quanto se emocionou pela permissão. Muito discretamente um canto
indígena acompanhou todo o ato amoroso.
E no tempo adequado, sem poder
contá-lo em segundos terrenos, todo o envolvimento cessou, o que pudera ser
permitido assim estava, no entanto, o resultado aguardado; a avó permanecia com
olhos bondosos para a frágil menina.
O que estava previsto poderia ser, de
fato, até aquela medida de tempo na floresta terrena, na idade de menina.
Apenas a sabedoria maior detém esse saber.
Discretamente, a pequena índia
começou a se mexer como quem quer despertar de um descanso profundo. Abriu os
olhinhos, esticou os braços, estava acordando para uma vida nova. A menina
agora, em seu espírito milenar, havia sido restabelecida e sua energia estava
vigorosa com uma saudação que lhe viera do lado de fora.
‒ Por favor, tem alguém aí? ‒ uma voz
perguntou.
Dily demorou uns segundos a
responder, como quem precisa assumir todos os controles do corpo, e respondeu:
‒ Sim.
A menina não conseguiu ainda se
levantar e correr para atender como faria antes. Ela estava terminando o
processo de despertamento. Conseguiu sentar-se.
‒ Sim – respondeu outra vez.
‒ Posso entrar? ‒ a voz perguntou.
‒ Sim – outra vez.
Devagar,
uma mulher entrou acompanhada de um homem e de outro jovem. Todos vestiam
branco.
A menina, sentada na cama, ainda
necessitada do recurso de uma nutritiva alimentação, sorriu.
‒ Minha querida, está sozinha? ‒ a
mulher perguntou.
‒ Sim.
‒ Oh, meu bem. Vamos ajudá-la.
Os três de branco rodearam a pequena
ao amparo necessário. O homem, com todo carinho e cuidado, tomou a menina nos
braços e os quatro saíram do local singelo onde não mais poderia abrigar aquele
coração com algo abençoado a realizar. Eram novos médicos que cuidariam daquela
região.
Quem sabe Dily terá seu nome entre os
grandes feitores do bem, como em prêmios notáveis de paz e ciência. No entanto,
algo definido é que todo propósito benfazejo será ladeado para o seu
cumprimento.
E os olhos bondosos da avó sorriram
no horizonte a se dispersarem na natureza.
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