Há uma definição
para a palavra
desejo,
sob o ponto de
vista da
psicologia?
Do ponto de
vista
etimológico,
desejo vem do
vocábulo latino
"desiderium",
"des"+"siderium",
algo como "na
direção das
estrelas".
Porém, com o
tempo, embora
tenha adquirido
um conteúdo mais
sofisticado,
nunca perdeu o
caráter de busca
incessante,
especialmente
por algo
difícil,
proibido,
inacessível, mas
invariavelmente
prazeroso. Para
os
psicanalistas,
grosso modo, o
desejo é a
expressão mais
intensa do Id ou
inconsciente
(uma dimensão
profunda do
aparelho
mental),
resultado da
busca
inesgotável e
irracional pela
reprodução de
experiências
prazerosas
(princípio do
prazer), e que
traz em si,
amalgamadas, as
pulsões de vida
e de morte, uma
vez que a
satisfação do
desejo
representa a
morte temporária
desse mesmo
desejo que,
dentro em pouco,
voltará à vida
pedindo nova
morte, num ciclo
incessante e,
não raro,
obsessivo ou
compulsivo,
embora natural e
inevitável em
todo ser humano.
Para a
fenomenologia
existencial,
particularmente
em Heidegger, o
desejo é parte
do modo de "ser-no-mundo" próprio
do "das-ein" ou,
numa tradução
aproximada do
alemão para o
português,
“ser-aí”, ente
cujo modo de ser
está
permanentemente
em jogo no
tempo, com
outros entes
“aí”, com outros
entes
simplesmente
dados, com
utensílios
resultantes do
universo da
técnica, e em
direção à morte.
Kierkegaard, por
sua vez,
considera que o
homem é
desespero e
angústia,
transitando
entre finito e
infinito, real e
eterno, desejos,
escolhas e
débitos (culpas)
consequentes
dessas mesmas
escolhas, sendo
o desejo
elemento da
paixão, único
afeto realmente
digno de
atribuir
verdadeiro
sentido à
existência.
De qualquer
maneira,
independentemente
da abordagem
filosófica ou
psicológica, é
ponto pacífico
que o homem é um
ser desejante, e
isso traz
inevitáveis
consequências
práticas e
teóricas à sua
experiência de
mundo.
Como entender o
desejo, suas
manifestações, e
a necessidade de
submetê-lo a
determinados
critérios? Seria
possível
educá-lo?
Em “O mal-estar
na
civilização”, Freud
assevera que a
civilização é
produto da
repressão ao
desejo. Não
refreasse seus
desejos e
instintos, a
humanidade não
conheceria o
progresso
técnico,
intelectual,
moral, político,
jurídico ou
social. A
capacidade do
homem de dizer
não à satisfação
daquilo que
deseja foi
essencial na
construção das
grandes obras do
espírito humano,
das noções de
limite, e até de
liberdade. Sem
dizer que,
quando de
natureza sexual,
sua energia pode
ser sublimada
para grandes
realizações da
ciência, da
arte, da
religião ou da
política. Para o
psicanalista
brasileiro Jorge
Forbes,
introdutor do
pensamento
lacaniano
(Jacques Lacan)
no Brasil,
“desejar” é
diferente de
“querer”. Seu
livro já
clássico “Você
quer o que
deseja?”
identifica
claramente essa
diferença. O
desejo é
espontâneo,
afetivo,
pulsional,
simbólico,
fantasioso,
lúdico.
Desejamos um
milhão de
coisas, mas
sabemos, por bom
senso, que
teremos apenas o
mínimo delas.
Além disso,
realizar desejos
cobra um preço
às vezes muito
alto. Daí nem
sempre estarmos
dispostos a
pagar o preço
que a vida cobra
pela realização
dos desejos. O
adolescente
deseja ser
médico, fantasia
a ideia de
vestir jaleco
branco com seu
nome de doutor
bordado na
lapela,
estetoscópio
pendurado no
pescoço,
prestígio,
fortuna,
respeito
social... Mas,
quando se depara
com a
necessidade de
estudar com
afinco, abrir
mão das baladas
de fim de
semana, ler até
tarde da noite
os livros
obrigatórios dos
vestibulares,
fazer aulas
particulares de
física, química,
biologia e
matemática,
enfrentar
concorrentes
brilhantes,
renunciar a
passeios, à
academia, ao
clube ou a um
namoro naquela
fase da vida,
noites de
plantão, provas
difíceis,
necessidade de
fluência e
leitura em
inglês, etc.
Para... Pensa
bem... E enfim
descobre que,
embora deseje
muito ser
médico, não
quer. Da mesma
forma o marido
ou esposa que
desejam outro
parceiro, mas
que não pagam o
preço de ver seu
lar arruinado
por uma traição,
e descobrem que
desejam, mas não
querem. Uma
pessoa que
deseja
emagrecer, mas
detesta fazer
dieta, ou seja,
deseja, mas não
quer, e assim
por diante.
O desejo, em si,
é uma
experiência
incontrolável,
embora caiba ao
sujeito, no
exercício de sua
liberdade,
decidir o que
deve ou não
fazer com ele.
Na ontologia
sartreana (Jean
Paul Sartre), o
desejo está no
âmbito da
experiência
pré-reflexiva,
portanto
anterior à
autonomia
enquanto
normatização de
si mesmo. A
“pré-sença” do
desejo se dá num
fluxo que se
“pró-jecta” no
tempo, lançando
o ser na
angústia própria
da liberdade, ou
seja, não somos
livres para
desejar, pois o
desejo é
automático e
estamos
condenados a
tê-lo, mas somos
responsáveis por
tudo que
decidimos fazer
com ele, seja
buscar sua
realização,
reprimi-lo,
sentir culpa por
senti-lo,
ocultá-lo,
revelá-lo ao
mundo, etc.
Assim, numa
perspectiva
existencial, só
é
verdadeiramente
livre o homem
capaz de dizer
não aos seus
próprios
desejos. Aquele
que não o é,
torna-se
automaticamente
escravo dos
desejos, e
equipara-se aos
animais,
ressalvando-se
que o animal é
condicionado aos
instintos,
dimensão bem
menos
sofisticada que
o desejo humano,
experiência
afetiva esta que
implica
fenômenos que
envolvem
memória,
linguagem,
representação,
etc. Portanto,
aquela visão do
senso comum que
traz o animal
solto na
floresta como
modelo de
liberdade é
totalmente
equivocada. O
modo de ser do
animal é
simplesmente
dado pela sua
condição de
animal em que
jaz, sem a menor
possibilidade de
escolher ser
outra coisa que
não seja aquilo
que a natureza o
condenou a ser,
sem nenhuma
liberdade de
escolha, nenhum
desejo,
totalmente atado
aos imperativos
de sobrevivência
e instinto
pertinentes à
sua espécie,
pelo menos
enquanto nessa
fase de sua
evolução
anímica.
Ainda por essa
abordagem, é
preciso
considerar que o
desejo é
vivência da
ordem exclusiva
da consciência,
que, numa visão
fenomenológica,
será sempre
consciência
intencional,
isto é,
consciência “de”
“alguma coisa”.
Por isso, a
depender do
caráter dessa
“alguma coisa”,
o ser prova
verdadeiros
“dramas de
consciência” por
manifestar
desejos nem
sempre
considerados
bons,
aceitáveis,
positivos,
belos,
enobrecedores
etc. Aliás, em
geral, mais que
estando no
mundo, mas,
antes, “sendo
mundo”, o que o
homem comum
deseja, como se
diz
popularmente, “é
ilegal, é
imoral, ou
engorda”.
Todavia, isso
não precisa
tornar-se um
drama, pois
seria, no
mínimo, cruel,
condenar-se um
homem por aquilo
que deseja. Daí
o Direito
penalizar o
homicida e não o
que deseja
matar, o que
pratica
pedofilia e não
o que sente
atração sexual
por crianças, o
que fere e não o
que guarda um
desejo secreto
de ferir, e
assim por
diante. Se assim
não fosse, nos
tornaríamos
todos juízes de
consciências
alheias. Do
ponto de vista
ético, o que
vale é a ação do
ser no mundo, a
maneira como
conduz suas
relações,
independentemente
dos seus desejos
e ideações.
Nesse caminho, é
preferível uma
humanidade que
faz o bem (numa
visão platônica
e, pois,
metafísica, do
que seria “o
bem” ideal; ou
numa ótica
aristotélica de
que “bom” é tudo
o que torna o
homem feliz no
contexto da
pólis), embora
não deseje, a
uma que deseje o
bem, mas faça o
mal ou seja
indiferente a
esse bem. O
filósofo
contemporâneo
Jürgen Habermas
trata disso com
segurança, fala
de uma ética do
discurso, em que
o que as pessoas
pensam ou sentem
é secundário; o
importante é que
haja uma
responsabilidade
acerca da
construção de
uma sociedade em
que as pessoas
convivam bem e
civilizadamente,
em que ninguém
faça mal a
ninguém, e que o
bem comum seja
contemplado. Na
esteira desse
pensamento,
questões de
consciência,
verdadeiramente,
não são
passíveis de
conhecimento
objetivo e nem
são da conta de
ninguém, e o
desejo está
naturalmente
entre elas.
Se o desejo
seria ou não
educável?
Acredito que
não, pois sendo
da ordem
pré-reflexiva,
pertence a uma
dimensão sobre a
qual, realmente,
o homem não tem
nenhum controle.
O ser não deseja
o que quer, ou o
que é moralmente
desejável, ou o
que é bonito ou
correto de se
desejar; o ser
deseja o que
deseja, e
pronto. A hora
que percebe, já
desejou, e não
há nada a se
fazer em relação
a essa vivência
em si. Mas é
possível, sim,
educar-se a
liberdade, e é
justamente para
isso que serve a
educação, para
mostrar ao homem
que ele deve
viver
eticamente, ou
seja, para viver
e sobreviver no
mundo é
fundamental
resistir e
sobreviver aos
nossos próprios
desejos. Eles
são nossos,
destarte podemos
decidir o que
fazer com eles,
equacionando
liberdade,
responsabilidade,
possibilidades,
conveniência,
valores sociais,
valores
pessoais,
valores éticos,
valores
estéticos,
eventualmente
valores
religiosos,
facticidade,
cultura, leis
etc.
Considerando-se
a evolução
humana, como
situar o desejo?
É possível
estabelecer um
parâmetro de
comparação para
dimensioná-lo de
forma global?
Em se tratando
da evolução
civilizatória, é
inegável que a
educação da
liberdade
transforma o
padrão de nossos
desejos,
tornando-os
menos grosseiros
num aspecto mais
geral e,
portanto, dentro
de óbvias
exceções. Por
isso, o
canibalismo, na
atualidade, nos
soa tão absurdo,
embora já tenha
sido prática
extremamente
prazerosa para a
humanidade
primicial. Ter
fome, por
exemplo, é da
dimensão do
instinto, porém,
no homem, sentir
fome aguça o
desejo de comer
este ou aquele
prato, saborear
essa ou aquela
iguaria, doce ou
salgada. Nesse
contexto, embora
não possa
escolher o
desejo
propriamente
considerado, o
ser pode
escolher, dentro
de suas
possibilidades
físicas,
financeiras,
geográficas,
mentais, morais,
jurídicas, etc.,
se vai ou não
satisfazer o seu
desejo. O ser é
livre para tal.
Ontem, os
primeiros
hominídeos
sonhavam rasgar
suas presas com
os dentes e
deliciar-se com
o sabor do
sangue fresco a
lhes escorrer
pela face. Hoje,
podemos salivar
pensando num
filé à
parmegiana com
batatas fritas.
Amanhã, só Deus
sabe. Nesse
aspecto, vale o
ditado: “o
hábito faz o
monge”. A cada
encarnação vamos
investindo na
disciplina de
nossa liberdade
até, depois de
muito tempo e
muitas
encarnações,
sentirmos
transformado o
teor de nossos
desejos. Isso é
curioso porque é
uma mudança que,
contrariamente
ao que se
acredita em
geral ocorra nas
dinâmicas
transformadoras
do ser, se dá,
literalmente, de
fora para
dentro: de tanto
dizer não a um
determinado
desejo, chega um
momento em que
ele não mais
emerge, à
semelhança de
uma mina de
petróleo que
simplesmente
para de jorrar.
Entretanto, a
natureza não dá
saltos, é
preciso muita
paciência
conosco mesmos
até que isso
aconteça, e pode
durar séculos ou
mesmo milênios.
Para uns mais
rapidamente,
para outros mais
lentamente, cada
qual no ritmo de
transformações
que consegue
imprimir à sua
própria história
espiritual,
produto de seus
sucessivos
projetos
existenciais,
sem comparações
infantis. Cada
ser humano,
entenda-se
Espírito, é um
universo
singular e
imprevisível que
se desdobra “em
mundo” e guarda
uma dinâmica
absolutamente
própria. E isso
também vale para
as humanidades,
que se formam
por afinidades
múltiplas e se
desdobram
igualmente não
só pela Terra,
mas por todo o
universo
infinito da
criação.
Considerando os
grandes
pensadores e
filósofos, do
passado e do
presente, há
algumas frases
marcantes que
podemos oferecer
à apreciação do
leitor, com
vistas ao tema?
Embora Sartre
seja um filósofo
ateu, quando
aborda a questão
da liberdade é
muito
pertinente, pois
preconiza
que “mais
importante do
que o que
fizeram de nós,
é o que nós
fizemos com o
que fizeram de
nós”. Ou seja,
por extensão, mais
importante do
que os desejos
que temos é o
que nós
decidimos fazer
com eles.
Pelo menos no
atual estágio de
evolução
espiritual em
que estamos, o
anseio pela
mudança abrupta
e radical de
nossas
inclinações
automáticas será
um caminho
inevitável de
frustrações.
Devemos lidar
com nossos
desejos com
indulgência,
como velhos
companheiros
construídos
durante séculos
de hábitos
prazerosos, por
isso a
necessidade de
haver paciência
com eles. No
entanto, na
medida do
possível, se nos
incomodam ou se
a satisfação
deles traz
problemas para
nós ou para os
outros, apenas a
mudança de
hábitos e
ocupações poderá
nos ajudar na
substituição dos
seus
automatismos, e
isso é um
trabalho para
muitas
encarnações.
Enquanto isso,
vamos tentando
ser úteis, mesmo
por entre as
sombras e
pântanos de
nossos próprios
desejos. O nosso
Chico Xavier,
com quem tive o
privilégio de
privar, sempre
nos ensinou que
“a paz é algo
que podemos
oferecer aos
outros, mesmo
sem tê-la para
nós mesmos”.
Ninguém precisa
saber o que
desejamos ou
não, pois isso é
de nosso foro
íntimo, pertence
à nossa
consciência, e,
de acordo com o
Espírito de
Verdade, em O
Livro dos
Espíritos,
de Allan Kardec,
apenas a Deus
devemos prestar
contas do que
vai em nossa
consciência. Na
vida prática,
mais importante
que tudo é o bem
ou mal que
objetivamente
tenhamos feito
uns aos outros.
E Caetano Veloso
é inspirado ao
dizer que “cada
um sabe a dor e
a delícia de ser
o que é”. E o
que somos? Sem
dúvida somos
imperfeitos. Se
formos esperar a
libertação de
nossos desejos
constrangedores
pra fazer o bem,
seremos, hoje, à
face da Terra,
imperfeitos e
inúteis. Por
isso, ainda o
nosso Chico nos
aclara a visão,
afirmando que
devemos
trabalhar pelo
bem mesmo
tateando no
escuro de nossas
imperfeições,
assim, pelo
menos,
seremos imperfeitos,
mas úteis, e
isso já contará
a nosso favor na
contabilidade
espiritual
perante a
misericórdia
divina. No fim,
em algum
instante da
eternidade,
alcançaremos a
iluminação, que
o príncipe
Sidarta, o Buda,
emissário de
Jesus no
Oriente, definiu
como o estágio
de absoluta
libertação de
todos os
desejos: “quando
o homem se
libertar de
todos os
desejos,
finalmente
descobrirá que
tem tudo o que
deseja”.
Alguma
consideração
final?
O desejo é motor
que impulsiona
as grandes
guinadas
pessoais e
coletivas, e a
experiência
estética,
através da arte,
talvez seja dos
caminhos mais
eficazes para
nos tornar seres
mais sublimes,
delicados,
generosos e
iluminados.
Penso que a
harmonia
universal é a
grande linguagem
divina. Penso
que Deus se
comunica por
música, e tudo
no universo
infinito é
deslumbramento e
caminha para uma
inexplicável e
espantosa
sinfonia de luz,
de cores
sublimes e de
aromas sutis.
Por isso
desejamos. Por
isso o desejo é
“de + siderium”,
em direção às
estrelas, não só
as do céu, mas
as estrelas que
vamos todos nos
tornando na
incrível viagem
dos milênios,
unindo-nos,
constituindo
gigantescas
constelações de
amor a refletir
o farol de
Deus.
Fonte: Retirado em inteiro teor de o Consolador uma Revista Semanal de Divulgação Espírita
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário