“Suportando-vos uns aos
outros, e perdoando-vos
uns aos outros, se algum
tiver queixa contra
outro; assim como o
Cristo vos perdoou,
assim fazei
vós também.
E, sobre tudo isto,
revesti-vos de caridade,
que é o
vínculo da
perfeição.”
Cl 3,13-14
Uma séria crise
abateu-se sobre o
movimento cristão dos
primeiros dias. Tiago e
vários seguidores eram
partidários da
circuncisão apoiados na
lei
mosaica, enquanto Paulo
e outros defendiam a
total independência do
Evangelho.
A circuncisão era um
rito exterior, um “sinal
de pacto”, a ser posto
em todos os descendentes
masculinos de Abraão, a
fim de ficar como
memorial da Aliança que
Yahweh, assim,
estabelecia com seu
povo. Significava um
compromisso tanto com o
povo de Israel, como com
o próprio Deus de
Israel. Rejeitar a
circuncisão resultava em
ser “expulso” do seu
povo (Gn 17,10-14). Os
estrangeiros que
desejassem entrar na
comunhão com o povo de
Israel e com o seu Deus,
bem como celebrar a
Páscoa e participar de
outras bênçãos, tinham
de submeter-se a este
rito, a circuncisão,
qualquer que fosse a sua
idade (Gn 34,14-17, 22;
Ex 12,48). A circuncisão
foi tornada um requisito
obrigatório da lei
mosaica. “E,
no oitavo dia, se
circuncidará ao menino a
carne do seu prepúcio”
(Lv 12,13). Isso era tão
importante que, se o
oitavo dia caísse no
altamente respeitado
Sábado, ainda assim se
devia realizar a
circuncisão (Jo 7,
22-23). João Batista,
Jesus e Paulo foram
circuncidados ao “oitavo
dia” (Lc 1,59; 2,21; Fl
3,5).
Paulo compreendeu a
questão com rara
profundidade e manteve
viva preocupação,
observando as polêmicas
que surgiam em torno
desse assunto, bem como
dos alimentos puros e
impuros, e a
determinação dos judeus
cristãos de não se
sentarem à mesa de
refeições comuns com os
cristãos gregos, nem
frequentar-lhes os
lares. Como ele temia, o
problema ameaçava de
ruptura a comunidade
cristã e colocava em
perigo o trabalho que
vinha realizando entre
os gentios.(1)
Os irmãos de Jerusalém,
que nunca tinham saído
de sua terra e não
compreendiam a situação
dos gentios, não
consideravam os
conversos do gentilismo
como verdadeiros
cristãos, afirmando que
não poderiam ter sido
aceitos sem antes
admitir a lei mosaica.
Essa questão não
preocupava os judeus
convertidos, tampouco os
prosélitos (2) convertidos.
Entretanto, na
comunidade de Antioquia,
que era constituída, em
sua grande maioria, por
cristãos com origem no
paganismo (3),
cujos laços com o
judaísmo eram muito
fracos, surgiam sérias
dificuldades.
Jesus prometera
aperfeiçoar a Lei -
Para estes,
sujeitarem-se ao rito da
circuncisão ou à
ritualística da lei
mosaica constituía-se em
fardo inaceitável,
reduzindo a experiência
da liberdade cristã à
estreiteza da sinagoga e
negando a universalidade
da mensagem de salvação
de Jesus.
Havia por trás de tudo
isso um grave e duplo
problema, um de cunho
religioso, outro de
caráter social. Se
continuasse assim,
teríamos cristãos de
primeira classe ou
cristãos inteiros e
meio-cristãos, criando
no cristianismo nascente
dois agrupamentos: um
interior e outro
exterior. A visão
judaizante, concentrada
em Jerusalém e liderada
por Tiago, afirmava que
Jesus nascera sob a Lei
de Moisés, e que dissera
não ter vindo anulá-la,
mas dar-lhe cumprimento,
assim como afirmara que
ela se cumpriria até o
último til e o último
iota (4)
(Mt
5, 17-18).
Esqueciam-se de que
Jesus havia prometido
aperfeiçoar a Lei e que
em muitas passagens
expressou-se assim: “Os
antigos diziam... mas eu
vos digo” (Mt
5, 21-22; Jo 8).
Emmanuel resgata e
aclara esses momentos na
sua magnífica obra Paulo
e Estêvão,
apresentando-nos no
capítulo V - Lutas pelo
Evangelho – as
discussões mais críticas
e decisivas, as quais
nos trazem excelente
material de reflexão e
aprendizado a nós que
buscamos estar
preparados para os
episódios de crise que
ocorrem em nossas vidas
e mesmo no seio das
instituições espíritas,
entre seus
trabalhadores.
“As reuniões espíritas
oferecem grandíssimas
vantagens, por
permitirem que os que
nela tomam parte se
esclareçam, mediante a
permuta de ideias, pelas
questões e observações
que se façam, das quais
todos aproveitam. Mas,
para que produzam todos
os frutos desejáveis,
requerem condições
especiais, que vamos
examinar, porquanto
erraria quem as
comparasse às reuniões
ordinárias.” (O
Livro dos Médiuns – cap.
XXIX – item 324.)
A proposta destes
apontamentos simples é
identificarmos nos
embates entre os
pensamentos de Tiago e
Paulo, com a mediação de
Simão Pedro, a ética da
alteridade.
Ética, segundo o
dicionarista Aurélio
Buarque de Holanda, é o
conjunto de normas e
princípios que norteiam
a boa conduta humana;
estudo dos juízos de
apreciação referentes à
conduta humana, do ponto
de vista do bem e do
mal.
O desafio de conviver
com quem pensa diferente
-
Alteridade
é a qualidade ou
natureza do que é outro,
diferente.
Podemos entender que
alteridade é
colocar-se no lugar do
outro numa relação
interpessoal, com
consideração,
valorização,
identificação, e
dialogar com o outro. O
exercício da alteridade
se aplica aos
relacionamentos tanto
entre indivíduos como
entre grupos culturais
religiosos, científicos,
étnicos etc. Portanto, o
estabelecimento de uma
relação de paz com os
diferentes, a capacidade
de conviver bem com a
diferença da qual o
outro é portador, isso é
a ética da alteridade.
A prática da alteridade
conduz da diferença à
soma nas relações
interpessoais entre os
seres humanos.
Alteridade é uma palavra
que vem ganhando uso
acentuado nos meios
sociais do século XXI,
entretanto a palavra em
si não serve para nada,
se não for acompanhada
da prática.
“Porque, se só amardes
os que vos amam, qual
será a vossa recompensa?
Não procedem assim
também os publicanos? Se
apenas os vossos irmãos
saudardes, que é o que
com isso fazeis mais do
que os outros? Não fazem
outro tanto os pagãos?”
(Mt
5, 46-47
– O Evangelho segundo o
Espiritismo, Cap. XII –
item 1.)
O desafio de conviver
com os que pensam
diferente de nós, com os
contrários, e aprender a
respeitá-los e amá-los
na sua diversidade,
constitui, ainda e
significativamente, um
desafio ético nos
centros espíritas e para
seus dirigentes e
colaboradores.
Para isso não precisamos
desistir de nossa visão
e de defendê-la, como
vemos em Paulo e
Estêvão, na página 471,
durante a discussão de
Barnabé e Paulo:
“O ambiente carregara-se
de nervosismo. Os
gentios de Antioquia
fitavam o orador,
enternecidos e gratos.
Os simpatizantes do
farisaísmo, ao
contrário, não
escondiam seu rancor,
em face daquela coragem
quase audaciosa. Nesse
instante, de olhos
inflamados por
sentimentos
indefiníveis, Barnabé
tomou a palavra,
enquanto o orador fazia
uma pausa, e considerou:
— Paulo, sou dos que
lamentam tua atitude
neste passo. Com que
direito poderás atacar a
vida pura do continuador
de Cristo Jesus?"
A palestra do ex-rabino
era rude e franca -
"Isso, inquiria-o ele
em tom altamente
comovedor, com a voz
embargada de lágrimas.
Paulo e Pedro eram os
seus melhores e mais
caros amigos.
Longe de se impressionar
com a pergunta, o orador
respondeu com a mesma
franqueza:
— Temos, sim, um
direito: — o de viver
com a verdade, o de
abominar a hipocrisia,
e, o que é mais sagrado
— o de salvar o nome de
Simão das arremetidas
farisaicas, cujas
sinuosidades conheço,
por constituírem o
báratro escuro de onde
pude sair para as
claridades do Evangelho
da redenção.
A palestra do ex-rabino
continuou rude e franca.
De quando em quando,
Barnabé surgia com um
aparte, tornando a
contenda mais renhida.
Entretanto, em todo o
curso da discussão, a
figura de Pedro era a
mais impressionante pela
augusta serenidade do
semblante tranquilo.”
As diferenças entre os
posicionamentos não
devem ser,
necessariamente,
rotuladas de defeitos ou
servirem de referências
para causar a
indiferença ou a
separação, somente
porque não compreendemos
as escolhas
e a trajetória do outro,
o que certamente
conseguiremos equacionar
melhor ao adquirirmos a
ética da alteridade.
Pela relação alteritária
é possível estabelecer
uma relação pacífica e
construtiva com os
diferentes, na medida em
que se identifique,
entenda e aprenda a
aprender com o
contrário.
Para que o processo de
aprendizado da
alteridade aconteça,
contudo, devemos atentar
para alguns aspectos das
diferenças:
a)
Identificação – para
isso devemos eliminar
quaisquer preconceitos e
ater-nos na real
identificação dos
posicionamentos do
outro, sabendo que
dependem da sua
estrutura psíquica,
formada ao longo das
múltiplas experiências
desta e de outras vidas;
b)
Entendimento –
procurarmos entender as
razões conscientes e,
até mesmo, as
inconscientes (medos,
anseios e motivações),
para que não façamos
avaliações superficiais
ou definitivas e
fechadas, que nos
impeçam de ampliar a
compreensão da postura
do outro e da diferença
identificada;
c)
Aprendizado – esta fase
permite-nos a
acessibilidade mútua, a
receptividade aos
sentimentos do outro,
facultando-nos uma
relação de aprendizado e
a aproximação pelos
aspectos que nos unem,
permitindo que o
esclarecimento e o
amadurecimento pelas
experiências vividas ao
longo do tempo
tragam–nos a sabedoria.
Pedro tinha diante de si
um dilema difícil -
Podemos aprender muito
sobre a identificação
das diferenças neste
relato de Emmanuel sobre
os pensamentos de Simão
Pedro:
“Naqueles rápidos
instantes, o Apóstolo
galileu considerou a
sublimidade da sua
tarefa no campo de
batalha espiritual,
pelas vitórias do
Evangelho. De um lado
estava Tiago, cumprindo
elevada missão junto do
judaísmo; de suas
atitudes conservadoras
surgiam incidentes
felizes para a
manutenção da igreja de
Jerusalém, erguida como
um ponto inicial para a
cristianização do mundo;
de outro lado estava a
figura poderosa de
Paulo, o amigo
desassombrado dos
gentios, na execução de
uma tarefa sublime; de
seus atos heroicos
derivava toda uma
torrente de iluminação
para os povos idólatras.
Qual o maior a seus
olhos de companheiro que
convivera com o Mestre e
dele recebera as mais
altas lições? Naquela
hora, o ex-pescador
rogou a Jesus lhe
concedesse a inspiração
necessária para a fiel
observância dos seus
deveres.”
Pedro também ajuda-nos
na experiência do
entendimento do outro:
“Era preciso ser justo,
sem parcialidade ou
falsa inclinação, O
Mestre amara a todos,
indistintamente.
Repartira os bens
eternos com todas as
criaturas. Ao seu olhar
compassivo e magnânimo,
gentios e judeus eram
irmãos. Experimentava,
agora, singular acuidade
para examinar
conscienciosamente as
circunstâncias. Devia
amar a Tiago pelo seu
cuidado generoso com os
israelitas, bem como a
Paulo de Tarso pela sua
dedicação extraordinária
a todos quantos não
conheciam a ideia do
Deus justo.
O ex-pescador de
Cafarnaum notou que a
maioria da assembleia
lhe dirigia curiosos
olhares. Os
companheiros de
Jerusalém deixavam
perceber cólera íntima,
na extrema palidez do
rosto. Todos pareciam
convocá-lo à discussão.
Barnabé tinha os olhos
vermelhos de chorar e
Paulo parecia cada vez
mais franco, verberando
a hipocrisia com a sua
lógica fulminante. O
Apóstolo preferiria o
silêncio, de modo a não
perturbar a fé ardente
de quantos se
arrebanhavam na igreja
sob as luzes do
Evangelho; mediu a
extensão da sua
responsabilidade
naquele minuto
inesquecível.
Encolerizar-se seria
negar os valores do
Cristo e perder suas
obras; inclinar-se para
Tiago seria a
parcialidade; dar
absoluta razão aos
argumentos de Paulo não
seria justo. Procurou
arregimentar na mente os
ensinamentos do Mestre e
lembrou a inolvidável
sentença: — o que
desejasse ser o maior
fosse o servo de todos.
Esse preceito
proporcionou-lhe imenso
consolo e grande força
espiritual.”
Pedro então se levantou
e pediu a palavra -
O aprendizado da
alteridade demonstrado
por Pedro, ao longo dos
anos, foi determinante
para o equacionamento da
questão fundamental:
“Quando o ex-pescador
reconheceu que as
divergências
prosseguiriam
indefinidamente,
levantou-se e pediu a
palavra, fazendo a
generosa e sábia
exortação de que os Atos
dos Apóstolos (capítulo
15º, versículos 7 e 11)
fornecem notícia:
— Irmãos — começou
Pedro, enérgico e sereno
—, bem sabeis que, de há
muito, Deus nos elegeu
para que os gentios
ouvissem as verdades do
Evangelho e cressem no
seu Reino.
O Pai, que conhece os
corações, deu aos
circuncisos e aos
incircuncisos a palavra
do Espírito Santo. No
dia glorioso do
Pentecostes as vozes
falaram na praça pública
de Jerusalém, para os
filhos de Israel e dos
pagãos. O Todo-Poderoso
determinou que as
verdades fossem
anunciadas
indistintamente. Jesus
afirmou que os
cooperadores do Reino
chegariam do Oriente e
do Ocidente. Não
compreendo tantas
controvérsias, quando a
situação é tão clara aos
nossos olhos.
O Mestre exemplificou a
necessidade de
harmonização constante:
palestrava com os
doutores do Templo;
frequentava a casa dos
publicanos; tinha
expressão de bom ânimo
para todos os que se
baldavam de esperança;
aceitou o derradeiro
suplício entre os
ladrões. Por que motivo
devemos guardar uma
pretensão de isolamento
daqueles que
experimentam a
necessidade maior? Outro
argumento que não
deveremos esquecer é o
da chegada do Evangelho
ao mundo, quando já
possuíamos a Lei. Se o
Mestre no-lo trouxe,
amorosamente, com os
mais pesados
sacrifícios, seria justo
enclausurarmo-nos nas
tradições convencionais,
esquecendo o campo de
trabalho? Não mandou o
Cristo que pregássemos a
Boa Nova a todas as
nações? Claro que não
poderemos desprezar o
patrimônio dos
israelitas. Temos de
amar nos filhos da Lei,
que somos nós, a
expressão de profundos
sofrimentos e de
elevadas experiências
que nos chegam ao
coração através de
quantos precederam o
Cristo, na tarefa
milenária de preservar
a fé no Deus único; mas
esse reconhecimento
deve inclinar nossa alma
para o esforço na
redenção de todas as
criaturas.”
A alteridade nos ensina
a tratar bem a todos
– “Abandonar
o gentio à própria sorte
seria criar duro
cativeiro, ao invés de
praticar aquele amor
que apaga todos os
pecados. É pelo fato de
muito compreendermos os
judeus e de muito
estimarmos os preceitos
divinos, que precisamos
estabelecer a melhor
fraternidade com o
gentio, convertendo-o em
elemento de frutificação
divina. Cremos que Deus
nos purifica o coração
pela fé e não pelas
ordenanças do mundo. Se
hoje rendemos graças
pelo triunfo glorioso do
Evangelho, que instituiu
a nossa liberdade, como
impor aos novos
discípulos um jugo que,
intimamente, não podemos
suportar? Suponho,
então, que a circuncisão
não deva constituir ato
obrigatório para quantos
se convertam ao amor de
Jesus-Cristo, e creio
que só nos salvaremos
pelo favor divino do
Mestre, estendido
generosamente a nós e a
eles também.”
Podemos aprender muito
com esses embates entre
Paulo e Tiago nas “Lutas
pelo Evangelho” e,
principalmente, com a
segura e experiente
liderança de Simão
Pedro.
“A exortação do
ex-pescador dava margem
a numerosas
interpretações; se
falava no respeito
amoroso aos judeus,
referia-se também a um
jugo que não podia
suportar. Ninguém,
todavia, ousou negar-lhe
a prudência e bom senso
indubitáveis. (...)
Havia em tudo, agora,
uma nota de satisfação
geral. As observações de
Pedro calaram fundo em
todos os companheiros.”
Não nos esqueçamos de
que não
temos mérito nenhum em
tratar bem a quem nos
trata bem também, mas
sim em tratar bem a quem
não nos trata bem. Pela
relação de alteridade é
possível tratarmos bem a
todos, independentemente
de como nos tratam. O
crescimento é eminente
quando lidamos com
aqueles que pensam,
sentem e agem
diferentemente da gente,
numa relação alteritária.
Somente atingiremos a
alteridade se nos
dispusermos a, diante do
diferente, parar, olhar,
ouvir com atenção,
ponderar com calma e,
somente, após isso, agir
com equilíbrio e
determinação, sempre
apoiados no bom senso e
na fé raciocinada à luz
do Consolador
Prometido.
Notas:
(1)
Gentios: povos ou nações
não israelitas.
(2)
Prosélito: converso,
isto é,
alguém que abraçou o
judaísmo, sendo
circuncidado, se homem.
(3)
Paganismo: é um termo
geral, normalmente usado
para se referir a
tradições religiosas
politeístas.
Fontes:
XAVIER, Francisco
Cândido. Paulo e
Estêvão. Pelo
Espírito Emmanuel.
36.ed. Rio de Janeiro:FEB,
2001. cap. V.
KARDEC, Allan. O
Evangelho segundo o
Espiritismo. 112.
ed. Rio [de Janeiro]:FEB,
1996. cap. III – item 2.
KARDEC, Allan. O
Livro dos Médiuns.
- ed. 112. ed. Rio
[de Janeiro]:FEB,.
cap. XXIX. item 324.
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