quarta-feira, 25 de abril de 2012

O movimento espírita ante a questão da anencefalia


Desde que foi divulgada a decisão do Supremo Tribunal Federal na questão do aborto dos anencéfalos, chegaram à redação desta revista algumas mensagens com críticas formuladas por confrades nossos destacando a suposta passividade dos espiritistas do Brasil com relação ao assunto.
Dentre as críticas recebidas, houve até mesmo uma que, numa simplificação absurda, atribuiu a decisão do Supremo à omissão dos espíritas brasileiros!
Parece que o autor de semelhante disparate não vive em nosso país e não acompanhou a intensa movimentação feita por várias correntes de pensamento, inclusive as entidades espíritas, no sentido de que a Suprema Corte deliberasse de modo diferente, com real respeito à vida, tal como determina a Constituição brasileira.
A movimentação feita em Brasília desdobrou-se em diferentes momentos, como foi amplamente divulgado por esta revista e por outros periódicos.
Nesta reportagem vamos ater-nos apenas a duas iniciativas, dentre as muitas de que a Federação Espírita Brasileira e outras instituições espíritas tomaram parte. 
O ex-ministro Eros Roberto Grau manifestou-se de
 forma clara sobre o assunto
 
A primeira – que merece todo o destaque – foi a publicação, na edição de setembro de 2011 da revista Reformador, de importante artigo escrito pelo Dr. Eros Roberto Grau, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal.
Intitulado “Pequena nota sobre o direito a viver”, eis, em seu inteiro teor, o texto de autoria do conhecido e respeitado jurista:
Inventei uma história para celebrar a Vida. Ana, filha de família muito rica, apaixona-se por um homem sem bens materiais, Antonio. Casa-se com separação de bens. Ana engravida de um anencéfalo e o casal decide tê-lo. Ana morre de parto, o filho sobrevive alguns minutos, herda a fortuna de Ana. Antonio herda todos os bens do filho que sobreviveu alguns minutos além do tempo de vida de Ana. Nenhuma palavra será suficiente para negar a existência  jurídica  do  filho
que só foi por alguns instantes além de Ana.
A história que inventei é válida no contexto do meu discurso jurídico. Não sou pároco, não tenho afirmação de espiritualidade a nestas linhas postular. Aqui anoto apenas o que me cabe como artesão da compreensão das leis.
Palavras bem arranjadas não bastam para ocultar, em quantos fazem praça do aborto de anencéfalos, inexorável desprezo pela vida de quem poderia escapar com resquícios de existência – e produzindo consequências jurídicas marcantes – do ventre que o abrigou. Matar ou deixar morrer o pequeno ser que foi parido não é diferente da interrupção da sua gestação. Mata-se durante a gestação, atualmente, com recursos tecnológicos aprimorados, bisturis eletrônicos dos quais os fetos procuram desesperadamente escapar no interior de úteros que os recusam. Mais “digna” seria a crueldade da sua execução imediatamente após o parto, mesmo porque deixaria de existir risco para as mães. Um breve homicídio e tudo acabado.
Vou contudo diretamente ao direito, nosso direito positivo. No Brasil o nascituro não apenas é protegido pela ordem jurídica, sua dignidade humana preexistindo ao fato do nascimento, mas é também titular de direitos adquiridos. Transcrevo a lei, artigo 2º do Código Civil:
  • A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.
No intervalo entre a concepção e o nascimento – dizia Pontes de Miranda – “os direitos, que se constituíram, têm sujeito, apenas não se sabe qual seja”.
Não há, pois, espaço para distinções, como assinalou o ministro aposentado do STF, José Néri da Silveira, em parecer sobre o tema:
  • Em nosso ordenamento jurídico, não se concebe distinção também entre seres humanos em desenvolvimento na fase intrauterina, ainda que se comprovem anomalias ou malformações do feto; todos enquanto se desenvolvem no útero materno são protegidos, em sua vida e dignidade humana, pela Constituição e leis.
Trata-se de seres humanos que podem receber doações [art. 542 do Código Civil], figurar em disposições testamentárias [art. 1.799 do Código Civil] e mesmo ser adotados [art. 1.621 do Código Civil].
É inconcebível, como afirmou Teixeira de Freitas ainda no século XIX, um de nossos mais renomados civilistas, que haja ente com suscetibilidade de adquirir direitos sem que haja pessoa. E, digo eu mesmo agora, nele inspirado, que se a doação feita ao nascituro valerá desde que aceita pelo seu representante legal – tal como afirma o artigo 542 do Código Civil – é forçoso concluir que os nascituros já existem e são pessoas, pois “o nada não se representa”.
Queiram ou não os que fazem praça do aborto de anencéfalos, o fato é que a frustração da sua existência fora do útero materno, por ato do homem, é inadmissível [mais do que inadmissível, criminosa] no quadro do direito positivo brasileiro. É certo que, salvo os casos em que há, comprovadamente, morte intrauterina, o feto é um ser vivo.
Tanto é assim que nenhum, entre a hierarquia dos juízes de nossa terra, nenhum deles em tese negaria aplicação do disposto no artigo 123 do Código Penal, (1) que tipifica o crime de infanticídio, à mulher que matasse, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho anencéfalo, durante o parto ou logo após, sujeitando-a a pena de detenção, de dois a seis anos. Note-se bem que ao texto do tipo penal acrescentei unicamente o vocábulo anencéfalo!
Ora, se o filho anencéfalo morto pela mãe sob a influência do estado puerperal é ser vivo, por que não o seria o feto anencéfalo que – repito – pode receber doações, figurar em disposições testamentárias e mesmo ser adotado?
Que lógica é esta que toma como ser, que considera ser alguém – e não res – o anencéfalo vítima de infanticídio, mas atribui ao feto que lhe corresponde o caráter de coisa ou algo assim?
De mais a mais, a certeza do diagnóstico médico da anencefalia não é absoluta, de modo que a prevenção do erro, mesmo culposo, não será sempre possível. O que dizer, então, do erro doloso? A quantas não chegaria, então, em seu dinamismo – se admitido o aborto – o “moinho satânico” de que falava Karl Polanyi? (2)
A mim causa espanto a ideia de que se esteja a postular abortos, e com tanto de ênfase, sem interesse econômico determinado. O que me permite cogitar da eventualidade de, embora se aludindo à defesa de apregoados direitos da mulher, estar-se a pretender a migração, da prática do aborto, do universo da ilicitude penal, para o campo da exploração da atividade econômica. Em termos diretos e incisivos, para o mercado.
Escrevi esta pequena nota para gritar, tão alto quanto possa, o direito de viver.'
(1) “Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após: Pena – detenção de dois a seis anos.” 
(2) A grande transformação: as origens da nossa época. Tradução portuguesa de Fanny Wrobel. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
Na véspera da sessão fez-se uma vigília defronte ao edifício do Supremo Tribunal Federal 
A segunda iniciativa, que ora destacamos, foi próxima à sessão realizada pelo Supremo Tribunal Federal, concluída no dia 12 de abril.

Referimo-nos à visita que uma comissão integrada por dirigentes da Federação Espírita Brasileira (vice-presidente Antonio Cesar Perri de Carvalho), AJE-Brasil (Luciano Alencar da Cunha) e AME-Brasil (Antonia Marilene da Silva) fez, nos dias 9 e 10 de abril, a todos os ministros do Supremo Tribunal Federal, levando-lhes um Memorial em Defesa da Vida
e com argumentos contrários à  liberação do aborto de anencéfalos, assinado pelos representantes das três Instituições, além do artigo do ex-ministro Eros Grau, acima reproduzido, e vários livros sobre o aborto publicados pela FEB e pela Folha Espírita Editora.
 
Ainda no mesmo dia 10, à noite, os confrades citados estiveram presentes no ato público realizado na Praça dos Três Poderes, defronte ao edifício do Supremo Tribunal Federal, oportunidade em  que  usaram da palavra.
É bom lembrar que vivemos em um país regido pela democracia e que, num regime democrático, é assim que
as proposições devem ser feitas, por meio do convencimento, do esclarecimento, da conscientização, jamais por meio da violência. E quando a decisão do órgão competente – como o é a Suprema Corte – é tomada, cabe-nos respeitá-la, ainda que ela nos desagrade, certos de que, autorizada ou não pela Justiça, a alternativa do aborto será sempre uma decisão da gestante, única pessoa que pode determinar se o filho que se aninha em seu ventre deve ou não viver.
Com respeito aos que, inadvertidamente, gostam de criticar as instituições que representam o movimento espírita brasileiro, acusando-as de omissão ou passividade, espera-se que os fatos descritos nesta matéria contribuam para que revejam suas críticas.
Registramos, por fim, o que nos disse, a propósito do assunto, um experiente confrade: – Filho, diante da imensa seara a que se referiu Jesus, cabe-nos trabalhar mais e falar menos.

 
 


O Consolador
 Revista Semanal de Divulgação Espírita
 
 

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