Comentários inspirados no livro Evolução Espiritual do Homem,
de Herculano Pires
Em nosso estudo sobre a ideia de pureza e impureza vimos que o conceito natural e sensorial da pureza, que considera puro o que nos dá prazer e vida e impuro o que é desagradável e nos leva à morte, é substituído a princípio pela experiência e análise racional. Por exemplo, um remédio pode ser desagradável, mas nos cura e, assim, não pode ser impuro. Posteriormente, com a interferência do poder religioso, desde as tribos, em mitos e tabus, que exigiam ritos de purificação, as ideias de puro e impuro são alteradas e passam a ser obstáculos à nossa liberdade e progresso. Seu objetivo principal torna-se manter o poder constituído, nos grandes impérios do passado e enriquecer a casta sacerdotal. Essa, nas primeiras civilizações, era a detentora das terras, dos bens e do conhecimento, mantido secreto, para uso exclusivo das elites.
Assim, no antigo Egito, os sacerdotes tinham domínio da economia, eram donos das terras férteis, conheciam a ciência oculta e eram muito ricos. Exigiam rigorosas iniciações dos novatos para ensinar a ciência oculta, criaram os mitos e deuses, para manter o povo na ignorância, alegando não poder ensinar isso ao povo, porque não poderiam conhecer a ciência e a verdade, tendo em vista o atraso e ignorância da gentalha. O próprio faraó era dominado pelos sacerdotes e seus ritos. Obedecendo os mitos criados por eles mesmos, que consideravam que as mulheres só podiam conceber filhos superiores e semideuses, quando fecundadas por deuses, os sacerdotes ensinavam que a rainha concebia o herdeiro do trono, fecundada pelos raios de Amon Ra, o deus Sol, por processo divino. A criança, nascendo, tinha seu crânio alongado por tiras, para deformá-lo, mostrando que o faraó era diferente dos mortais comuns. O faraó sempre olhava para cima, nas cerimônias públicas, e nunca encarava um ser “comum” nos olhos.
Os mitos egípcios da criação do mundo por Isis, que fez bonecos de barro, (sete, um número mágico) e depois aproximou deles o sinal da vida, fazendo-os respirar, foram a base de Moisés para, na Gênese, estabelecer o Deus oleiro que molda Adão do barro, adaptando o mito à ideia de um só Deus. Emmanuel nos esclarece que o Levítico mosaico é um repositório desses conhecimentos secretos, escritos em linguagem cifrada, cuja chave se perdeu no tempo. Moisés, por ser um filho adotivo da princesa, tivera acesso em sua educação a essa Ciência oculta, daí o seu poder ser capaz de enfrentar o poder sacerdotal.
O mito da virgindade e da impureza da mulher que tinha vida sexual permeia toda a Antiguidade. O cristianismo durante séculos oscila entre essa ideia da virgem mãe, que não era questão de fé obrigatória na Igreja, até que na época do romantismo, em que Vitor Hugo principia a resgatar a mulher em sua dignidade, fazendo-a ainda que inferior, mas pedestal e companheira do homem, a Igreja, para manter a mulher “em seu devido lugar”, proclama o dogma da virgindade de Maria e sua ascensão em corpo e espírito ao Paraíso. Com isso, apenas ela, a Virgem Mãe, a mulher Santíssima, era digna, e todas as demais permaneciam indignas ou “menos dignas”. A castidade é finalmente condição obrigatória da espiritualidade, e o prazer sexual, animalesco e inferior, coloca o homem e a mulher casados sempre em desvantagens por ceder aos instintos inferiores, ao invés de superar a matéria.
Na época de Jesus os sacerdotes judeus chegavam ao requinte da exploração e da dominação: a mulher que paria, com isso, se tornava impura. Era necessário que entregasse no Templo dois pombos para serem sacrificados a Javé, comprando dos vendilhões aqueles que tinham sido “sagrados” pelos sacerdotes.
A mulher não podia entrar no Templo. Não era digna. Assim, chegava apenas até o átrio do Templo de Jerusalém, entregava os pombos para o sacrifício e, só depois, poderia reassumir sua vida sexual. Claro que não serviam pombos criados por você, em casa, a preço mais barato. Só os pombos sagrados em rituais eram vendidos no Templo e locais de culto, comprados com dinheiro do Templo. Os fariseus e sacerdotes haviam conseguido que o dominador romano permitisse o câmbio das moedas de César, que eram as válidas fora do Templo. Com isso as famílias dos que viviam do sacerdócio enriqueciam e o dinheiro parco do povo, empobrecido pelos altos impostos que os romanos cobravam dos povos dominados para manter o luxo de Roma, era entregue para ser trocado em mesas de cambistas, de forma desonesta e exploradora que mais os empobrecia. Daí por que Jesus expulsa os vendilhões (de animais sagrados), solta os animais e vira as mesas dos cambistas. Era a indignação do Justo, diante dos que faziam do Templo um antro de ladrões. Era um ato simbólico, sem violência contra pessoas, para ensinar ao povo e aos exploradores que havia quem não concordava com tais conceitos de impureza e rituais e purificação. Claro que no dia seguinte o comércio continuou, mas Jesus, na ocasião, exprobou a hipocrisia dos escribas e fariseus que deviam defender o povo, e mostrou-lhes o que se reservava aos que traíam assim sua tarefa, que deveria ser esclarecedora.
Esse ato de Jesus foi um dos que inspirou Gandhi, em sua gigantesca tarefa de libertar a Índia do domínio inglês, usando a não-violência da tradição hindu. Gandhi, em várias ocasiões, ensinou a desobediência civil às leis absurdas e, com o povo, caminhou pelas ruas em marchas diversas, onde os objetos de exploração do colonizador foram destruídos e substituídos por objetos simples de confecções caseiras.
Esses fatos relembrados em parte por Herculano Pires no estudo referido nunca são explicados por nossos estudiosos, exceção feita a Herculano. Nossos escritores e estudiosos espíritas ainda vivem engolfados pela cultura tradicional religiosa do Brasil. Assim, consideram o ato sexual como uma inferioridade necessária ao nosso estágio evolutivo e que é superada pelos Espíritos superiores. Nem mesmo procuram “consagrar o conúbio sexual, entre almas afins, unidas há muitos séculos pelo amor conjugal”. Sempre está implícito que é preciso ceder ao sexo, porque não temos ainda condições do amor espiritual.
No mediúnico, há uma única exceção. André Luiz, no livro Evolução em Dois Mundos, foge da visão de “impureza” do ato sexual e chama o ato sexual de alimento espiritual necessário ao progresso. Colocação clara e revolucionária.
A cultura e a vivência de Herculano Pires nos esclarecem que, no Espiritismo:
“Os conceitos relativos a pureza e impureza romperam suas ligações umbilicais com o passado e abriram-se em novas dimensões de uma realidade surpreendente”. Refere-se Herculano às novas dimensões da vida espiritual que o Espiritismo nos traz. “A pureza deixou de ser um tabu para se transformar num conceito real, de bases científicas. Passou-se a entender por pureza a naturalidade das coisas, e consequentemente por impureza as deformações das realidades sistemáticas imaginárias dos clérigos, dos teólogos e também dos positivistas e materialistas, todos eles mais amigos de Platão do que da verdade (negritamos). Kardec mudava o sentido dos conceitos fundamentais do bem e do mal, mostrando através de suas pesquisas psicológicas, na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que mal e bem são conceitos relativos ao processo universal da evolução.
O mal é a estagnação, o atraso, a ignorância, e o bem é o progresso, o fluxo das coisas e dos seres, a transcendência”.
Quanta sabedoria! Apenas para compreender e explicar esse parágrafo, precisaríamos escrever muitos artigos. No entanto, as mudanças da década de 1960, o movimento pela liberdade sexual no mundo, pela dignidade da mulher, da criança formulam as novas leis que se aproximam mais da igualdade e caminham para maior Justiça e Amor. Os filósofos modernos têm desmitificado Platão, mostrando-nos que as ideias do Absoluto nos fazem escorregar para mentiras e autoritarismos. Já o Racionalismo relativo, esposado pelo Espiritismo, desde sua Codificação, faz, da pureza e da verdade, conceitos relativos, e isso nos deve dar uma postura humilde, pela compreensão de que a verdade é evolutiva.
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