terça-feira, 2 de outubro de 2012

Culpa, arrependimento e reparação sob a ótica espírita


Claudia Gelernter


Parte 2 e final 

Hoje, a questão da culpa tornou-se ainda mais abrangente, de acordo com a ideologia vigente. No capitalismo, somos culpados se não juntamos capital. O fracasso consiste em não ser sucesso nos negócios, nos estudos, na empresa, no consumo. Para as mulheres, mais que isso: fracassadas são as que não conseguem manter o padrão de beleza das modelos magérrimas das passarelas. 

Jean-Yeves Leloup, o padre francês, autor do livro “Normose, a Patologia da Normalidade”, criou um conceito bastante interessante para definir o contexto atual. Chamou de “normose” tudo o que é aceito socialmente como sendo algo normal, mas que, no entanto, causa sofrimento, patologias e até mesmo a morte. 

As relações fluidas, o consumo exacerbado, a busca pelo padrão de beleza ideal, pelo sucesso, pelo poder etc., faz com que boa parcela da população sofra, gerando sintomas de difícil solução. Somos culpados por não conseguirmos atingir a meta proposta, dentro desse padrão de normose atual. E, buscando encobrir a culpa, usamos máscaras sociais que nos fazem parecer. Parecemos não errar, parecemos ter, parecemos ser. Mas só parecemos. Todos erramos, nada possuímos [uma vez que tudo pertence a Deus e pode nos ser retirado a qualquer momento] e, nesse caminho, nem sequer temos conhecimento de quem realmente somos. 
 
Salientamos ainda que, se por um lado temos a questão da culpa como produto social, não é menos verdadeiro que temos tido contato, há mais de dois mil anos, com outras formas de pensamento que nos trazem reflexões sobre a situação do apego à matéria e o descaso com as questões do Espírito. Portanto, embora mergulhados numa ideologia marcante e opressora, não nos faltam opções filosóficas e religiosas neste contexto para que possamos analisar nosso modo de ser e agir no mundo e suas possíveis consequências.

O remorso como mecanismo de autopunição 
Culpa é a consciência de um erro cometido através de um ato que provocou algum prejuízo [seja material ou moral] a si mesmo ou a outrem. A consciência do erro traz-nos sofrimento. E tal sentimento pode ser vivenciado de duas formas: saudável ou patologicamente.

Chamaremos de culpa saudável aquela que nos leva ao arrependimento sincero e que, embora revestida de dor, impulsiona o ser à reparação.
Na origem da palavra, arrependimento quer dizer mudança de atitude, ou seja, atitude contrária, ou oposta, àquela tomada anteriormente. Ela origina-se do grego metanoia (meta=mudança, noia=mente). Arrependimento quer dizer, portanto, mudança de mentalidade. 

Temos, então, no processo saudável, primeiro o diagnóstico do erro. Sem este, impossível seguirmos adiante sem acumularmos mais débitos. Pessoas que se mantêm com a consciência adormecida, ao acordar, resgatam dores maiores, acumuladas devido à cegueira espiritual em que se comprazem. Importante ressaltar que nenhum filho está à margem do Amor do Pai Celestial. Todos temos, em diversas oportunidades e em variados contextos, contato com as verdades do Mundo Maior. Preciso é que a boa vontade surja no cenário, sob risco de ficarmos derrapando na estrada evolutiva além do necessário, colhendo dores tardias. É preciso que exista o arrependimento sincero. Ou seja, a mudança de mentalidade.
Diagnosticamos o erro e não desejamos mais praticá-lo. Contudo, não ficaremos apenas na luta pela não repetição do mal cometido, sentindo a dor da expiação [a dor sentida pela dor causada]. Iremos além: no terceiro [e imprescindível] passo, seguiremos em direção à reparação.

Allan Kardec, no livro O Céu e o Inferno, no código penal da vida futura, afirma que "o arrependimento, conquanto seja o primeiro passo para a regeneração, não basta por si só; são precisas a expiação e a reparação. (...) Arrependimento, expiação e reparação constituem, portanto, as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas consequências".

Na culpa patológica temos, como resultado, apenas o remorso, num pensamento em circuito fechado, no qual o ser acredita [erroneamente] que, ao sentir a dor repetida, está pagando pelo mal cometido e resgatando seus débitos. Triste ilusão, em que a pessoa que sofre mantém-se num monodeísmo, autoflagelando-se, sem conseguir libertar-se ou evoluir. Trata-se aqui de um processo de congelamento evolutivo, uma trava psicológica que leva a sérias patologias da mente e do corpo se não percebidas e alteradas em pouco tempo. 

No remorso o sujeito enclausura-se em sua dor, lamentando-se, acreditando não ser merecedor de nada bom, desistindo de lutar, de reparar para libertar-se. Não consegue perceber a função do erro e da dor na evolução de si próprio, estagnando em águas tormentosas, num continuo sofrer sem sentido. O remorso o faz sofrer, mas não o liberta. A pessoa fica acomodada na queixa e na lamentação. Mais amadurecida psicologicamente, avançaria pelo caminho do autoperdão e seguiria em direção à reparação.  

Muitas vidas e a culpa inconsciente 
Com o advento da Doutrina Espírita, adquirimos conhecimentos importantes, tais como o da reencarnação. Aprendemos, através dela, que experimentamos existências sucessivas, num continuum evolutivo, em que as experiências surgem como ferramentas preciosas, impulsionando o ser à melhoria constante. Nesse processo, a dor pode ser comparada com o advento da febre no vaso orgânico, que assinala algum problema infeccioso que deve ser diagnosticado para que possa ser tratado. Na alma, a dor tem o importante papel de nos alertar sobre algo moral que não vai bem. 

Precisamos sair da postura persecutória em que frequentemente nos alojamos, analisando a dor como uma inimiga. Muito ao contrário, ela deve ser vista como oportunidade de conhecimento, de entendimento de nós mesmos, para uma possível melhoria íntima real.
O que acontece é que, viciados nesse ‘mal sofrer’, seguimos acumulando remorsos, distantes ainda do objetivo maior, que é o de aprender com os erros, reparando-os e seguindo adiante, libertos.
Vamos acumulando no psiquismo inconsciente emoções relacionadas à culpa patológica, carregando, em existências posteriores, problemas de difícil solução. Síndromes neuróticas podem estar intimamente ligadas a essas lembranças pretéritas, porém não acessíveis à consciência. Por exemplo: o medo terrível que algumas pessoas apresentam de estar em posição de comando podem refletir erros do passado, quando precisaram lidar com a experiência do poder e faliram, devido à sua personalidade arrogante, abusiva ou intempestiva.

A Doutrina Espírita auxilia-nos sobremaneira na compreensão de todo esse processo, pois nos revela a anterioridade do Ser, onde muitas vezes está a gênese dos desequilíbrios do hoje. Passamos a nos compreender como senhores de nossas ações e tendemos, portanto, à mudança, libertando-nos do remorso patológico e aprendendo a viver com mais responsabilidade. 

E os que acabam de chegar ao Espiritismo? 
Outro ponto que gostaríamos de citar é sobre os neófitos, os que chegam à Doutrina Espírita e começam a beber em suas fontes. Logo percebem a grandiosidade da mensagem reveladora e em muitos casos assustam-se e se esquivam de saber mais, amedrontados com a possibilidade de nunca conseguirem realizar seus ensinamentos.

Outros, que persistem um pouco mais, mas que ainda não compreenderam a mensagem em toda a sua extensão, iniciam um processo autopunitivo complexo, sofrendo demasiadamente a dor oriunda de seu passado complicado. 

Um exemplo: pessoas que fazem uso de drogas [mesmo as chamadas lícitas], ao aprenderem o que ocorre com o corpo espiritual [perispírito], podem passar a sentir tremendas dificuldades íntimas.
É preciso que se saiba que não importa o tamanho do problema ou do erro, mas nosso empenho sadio nas escolhas do hoje que redundarão num futuro diferente.
Não temos mais controle sobre o que já fizemos. Isso é passado. Mas podemos controlar o nosso próprio futuro e isso realmente depende de nós.

Os erros nos ajudam sobremaneira na compreensão sobre os novos caminhos que devem ser trilhados. São importantíssimos para nossa evolução. Não farão sentido para nós determinadas escolhas se não soubermos o porquê delas. A fé precisa ser raciocinada. Devemos saber por que precisamos mudar, como mudar e quando mudar. E mesmo que não consigamos nos reformar em determinados aspectos, o que aprendemos é que precisamos tornar a tentar, tornar a tentar e tornar a tentar... setenta vezes sete vezes, se preciso for... 

E se não tivermos a oportunidade de reparar o mal que fizemos com determinada pessoa, diretamente? 

Busquemos não repetir o erro e amemos muito. Disse o apóstolo Pedro que “O amor cobre uma multidão de pecados” (I Pedro, 4:8). É isso.

Recordemos que do erro de Rousseau e de Maria de Magdala surgiram frutos maravilhosos. Embora sem conseguirem uma reparação direta com os prejudicados ainda naquela encarnação [no caso de Rousseau, os cinco filhos por ele abandonados], ambos optaram pelo exercício do amor desinteressado e com isso nos deixaram um belíssimo e importante legado que, se observado e levado a efeito, ajuda-nos em nossa caminhada, libertando-nos do remorso, impulsionando-nos ao acerto, ao bom caminho, conforme já nos indicava, há dois mil anos, Jesus, o Mestre por excelência. 

E mesmo que tenhamos de aguardar um tempo maior para conseguirmos oportunidade de reparação direta, não tenhamos dúvida de que, fortalecidos pelo amor em ação, conseguiremos ultrapassar barreiras íntimas, tornando-nos, por fim, benfeitores não apenas destes, mas de muitos outros que cruzarem os nossos caminhos. 
 
Referências bibliográficas: 
LELOUP: J. Y; WEILL, P.; CREMA, R. Normose: a patologia da normalidade. São Paulo, Thot, 1997.  
KARDEC, A. O Céu e o Inferno, Código da Vida Futura, p.94, Tradução de Manuel Justiniano Quintão, 42ª edição; FEB; Rio de Janeiro, 1998. 
___________O Livro dos Espíritos, 1ª edição comemorativa do sesquicentenário, Tradução de Evandro Noleto Bezerra, FEB, Rio de Janeiro, 2006. 
ROUSSEAU, J.J.; Emílio ou Da Educação; tradução Roberto Leal Ferreira, 3ª edição, São Paulo, Martins Fontes, 2004. 
WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo, Martin Claret. 4ª edição, 2001. 
XAVIER, F.C.; Boa Nova, capítulo Maria de Magdala, pelo Espírito Humberto de Campos; FEB; 3ª edição, Rio de Janeiro, 2008.
Fonte: O Consolador, uma Revists Semanal de Divulgação da Doutrina Espírita

Nenhum comentário:

Postar um comentário