Claudia Gelernter |
Parte 2 e final |
Hoje, a questão
da culpa
tornou-se ainda
mais abrangente,
de acordo com a
ideologia
vigente. No
capitalismo,
somos culpados
se não juntamos
capital. O
fracasso
consiste em não
ser sucesso nos
negócios, nos
estudos, na
empresa, no
consumo. Para as
mulheres, mais
que isso:
fracassadas são
as que não
conseguem manter
o padrão de
beleza das
modelos
magérrimas das
passarelas.
Jean-Yeves
Leloup, o padre
francês, autor
do livro
“Normose, a
Patologia da
Normalidade”,
criou um
conceito
bastante
interessante
para definir o
contexto atual.
Chamou de
“normose” tudo o
que é aceito
socialmente como
sendo algo
normal, mas que,
no entanto,
causa
sofrimento,
patologias e até
mesmo a morte.
As relações
fluidas, o
consumo
exacerbado, a
busca pelo
padrão de beleza
ideal, pelo
sucesso, pelo
poder etc., faz
com que boa
parcela da
população sofra,
gerando sintomas
de difícil
solução. Somos
culpados por não
conseguirmos
atingir a meta
proposta, dentro
desse padrão de
normose atual.
E, buscando
encobrir a
culpa, usamos
máscaras sociais
que nos fazem
parecer.
Parecemos não
errar, parecemos
ter, parecemos
ser. Mas só
parecemos. Todos
erramos, nada
possuímos [uma
vez que tudo
pertence a Deus
e pode nos ser
retirado a
qualquer
momento] e,
nesse caminho,
nem sequer temos
conhecimento de
quem realmente
somos.
Salientamos
ainda que, se
por um lado
temos a questão
da culpa como
produto social,
não é menos
verdadeiro que
temos tido
contato, há mais
de dois mil
anos, com outras
formas de
pensamento que
nos trazem
reflexões sobre
a situação do
apego à matéria
e o descaso com
as questões do
Espírito.
Portanto, embora
mergulhados numa
ideologia
marcante e
opressora, não
nos faltam
opções
filosóficas e
religiosas neste
contexto para
que possamos
analisar nosso
modo de ser e
agir no mundo e
suas possíveis
consequências.
O remorso como
mecanismo de
autopunição
Culpa é a
consciência de
um erro cometido
através de um
ato que provocou
algum prejuízo
[seja material
ou moral] a si
mesmo ou a
outrem. A
consciência do
erro traz-nos
sofrimento. E
tal sentimento
pode ser
vivenciado de
duas formas:
saudável ou
patologicamente.
Chamaremos de
culpa saudável
aquela que nos
leva ao
arrependimento
sincero e que,
embora revestida
de dor,
impulsiona o ser
à reparação.
Na origem da
palavra,
arrependimento
quer dizer
mudança de
atitude, ou
seja, atitude
contrária, ou
oposta, àquela
tomada
anteriormente.
Ela origina-se
do grego
metanoia
(meta=mudança,
noia=mente).
Arrependimento
quer dizer,
portanto,
mudança de
mentalidade.
Temos, então, no
processo
saudável,
primeiro o
diagnóstico do
erro. Sem este,
impossível
seguirmos
adiante sem
acumularmos mais
débitos. Pessoas
que se mantêm
com a
consciência
adormecida, ao
acordar,
resgatam dores
maiores,
acumuladas
devido à
cegueira
espiritual em
que se
comprazem.
Importante
ressaltar que
nenhum filho
está à margem do
Amor do Pai
Celestial. Todos
temos, em
diversas
oportunidades e
em variados
contextos,
contato com as
verdades do
Mundo Maior.
Preciso é que a
boa vontade
surja no
cenário, sob
risco de
ficarmos
derrapando na
estrada
evolutiva além
do necessário,
colhendo dores
tardias. É
preciso que
exista o
arrependimento
sincero. Ou
seja, a mudança
de mentalidade.
Diagnosticamos o
erro e não
desejamos mais
praticá-lo.
Contudo, não
ficaremos apenas
na luta pela não
repetição do mal
cometido,
sentindo a dor
da expiação [a
dor sentida pela
dor causada].
Iremos além: no
terceiro [e
imprescindível]
passo,
seguiremos em
direção à
reparação.
Allan Kardec, no
livro O Céu e
o Inferno,
no código penal
da vida futura,
afirma que "o
arrependimento,
conquanto seja o
primeiro passo
para a
regeneração, não
basta por si só;
são precisas a
expiação e a
reparação. (...)
Arrependimento,
expiação e
reparação
constituem,
portanto, as
três condições
necessárias para
apagar os traços
de uma falta e
suas
consequências".
Na culpa
patológica
temos, como
resultado,
apenas o
remorso, num
pensamento em
circuito
fechado, no qual
o ser acredita
[erroneamente]
que, ao sentir a
dor repetida,
está pagando
pelo mal
cometido e
resgatando seus
débitos. Triste
ilusão, em que a
pessoa que sofre
mantém-se num
monodeísmo,
autoflagelando-se,
sem conseguir
libertar-se ou
evoluir.
Trata-se aqui de
um processo de
congelamento
evolutivo, uma
trava
psicológica que
leva a sérias
patologias da
mente e do corpo
se não
percebidas e
alteradas em
pouco tempo.
No remorso o
sujeito
enclausura-se em
sua dor,
lamentando-se,
acreditando não
ser merecedor de
nada bom,
desistindo de
lutar, de
reparar para
libertar-se. Não
consegue
perceber a
função do erro e
da dor na
evolução de si
próprio,
estagnando em
águas
tormentosas, num
continuo sofrer
sem sentido. O
remorso o faz
sofrer, mas não
o liberta. A
pessoa fica
acomodada na
queixa e na
lamentação. Mais
amadurecida
psicologicamente,
avançaria pelo
caminho do
autoperdão e
seguiria em
direção à
reparação.
Muitas vidas e a
culpa
inconsciente
Com o advento da
Doutrina
Espírita,
adquirimos
conhecimentos
importantes,
tais como o da
reencarnação.
Aprendemos,
através dela,
que
experimentamos
existências
sucessivas, num
continuum
evolutivo, em
que as
experiências
surgem como
ferramentas
preciosas,
impulsionando o
ser à melhoria
constante. Nesse
processo, a dor
pode ser
comparada com o
advento da febre
no vaso
orgânico, que
assinala algum
problema
infeccioso que
deve ser
diagnosticado
para que possa
ser tratado. Na
alma, a dor tem
o importante
papel de nos
alertar sobre
algo moral que
não vai bem.
Precisamos sair
da postura
persecutória em
que
frequentemente
nos alojamos,
analisando a dor
como uma
inimiga. Muito
ao contrário,
ela deve ser
vista como
oportunidade de
conhecimento, de
entendimento de
nós mesmos, para
uma possível
melhoria íntima
real.
O que acontece é
que, viciados
nesse ‘mal
sofrer’,
seguimos
acumulando
remorsos,
distantes ainda
do objetivo
maior, que é o
de aprender com
os erros,
reparando-os e
seguindo
adiante,
libertos.
Vamos acumulando
no psiquismo
inconsciente
emoções
relacionadas à
culpa
patológica,
carregando, em
existências
posteriores,
problemas de
difícil solução.
Síndromes
neuróticas podem
estar
intimamente
ligadas a essas
lembranças
pretéritas,
porém não
acessíveis à
consciência. Por
exemplo: o medo
terrível que
algumas pessoas
apresentam de
estar em posição
de comando podem
refletir erros
do passado,
quando
precisaram lidar
com a
experiência do
poder e faliram,
devido à sua
personalidade
arrogante,
abusiva ou
intempestiva.
A Doutrina
Espírita
auxilia-nos
sobremaneira na
compreensão de
todo esse
processo, pois
nos revela a
anterioridade do
Ser, onde muitas
vezes está a
gênese dos
desequilíbrios
do hoje.
Passamos a nos
compreender como
senhores de
nossas ações e
tendemos,
portanto, à
mudança,
libertando-nos
do remorso
patológico e
aprendendo a
viver com mais
responsabilidade.
E os que acabam
de chegar ao
Espiritismo?
Outro ponto que
gostaríamos de
citar é sobre os
neófitos, os que
chegam à
Doutrina
Espírita e
começam a beber
em suas fontes.
Logo percebem a
grandiosidade da
mensagem
reveladora e em
muitos casos
assustam-se e se
esquivam de
saber mais,
amedrontados com
a possibilidade
de nunca
conseguirem
realizar seus
ensinamentos.
Outros, que
persistem um
pouco mais, mas
que ainda não
compreenderam a
mensagem em toda
a sua extensão,
iniciam um
processo
autopunitivo
complexo,
sofrendo
demasiadamente a
dor oriunda de
seu passado
complicado.
Um exemplo:
pessoas que
fazem uso de
drogas [mesmo as
chamadas
lícitas], ao
aprenderem o que
ocorre com o
corpo espiritual
[perispírito],
podem passar a
sentir tremendas
dificuldades
íntimas.
É preciso que se
saiba que não
importa o
tamanho do
problema ou do
erro, mas nosso
empenho sadio
nas escolhas do
hoje que
redundarão num
futuro
diferente.
Não temos mais
controle sobre o
que já fizemos.
Isso é passado.
Mas podemos
controlar o
nosso próprio
futuro e isso
realmente
depende de nós.
Os erros nos
ajudam
sobremaneira na
compreensão
sobre os novos
caminhos que
devem ser
trilhados. São
importantíssimos
para nossa
evolução. Não
farão sentido
para nós
determinadas
escolhas se não
soubermos o
porquê delas. A
fé precisa ser
raciocinada.
Devemos saber
por que
precisamos
mudar, como
mudar e quando
mudar. E mesmo
que não
consigamos nos
reformar em
determinados
aspectos, o que
aprendemos é que
precisamos
tornar a tentar,
tornar a tentar
e tornar a
tentar...
setenta vezes
sete vezes, se
preciso for...
E se não
tivermos a
oportunidade de
reparar o mal
que fizemos com
determinada
pessoa,
diretamente?
Busquemos não
repetir o erro e
amemos muito.
Disse o apóstolo
Pedro que “O
amor cobre uma
multidão de
pecados” (I
Pedro, 4:8). É
isso.
Recordemos que
do erro de
Rousseau e de
Maria de Magdala
surgiram frutos
maravilhosos.
Embora sem
conseguirem uma
reparação direta
com os
prejudicados
ainda naquela
encarnação [no
caso de
Rousseau, os
cinco filhos por
ele
abandonados],
ambos optaram
pelo exercício
do amor
desinteressado e
com isso nos
deixaram um
belíssimo e
importante
legado que, se
observado e
levado a efeito,
ajuda-nos em
nossa caminhada,
libertando-nos
do remorso,
impulsionando-nos
ao acerto, ao
bom caminho,
conforme já nos
indicava, há
dois mil anos,
Jesus, o Mestre
por excelência.
E mesmo que
tenhamos de
aguardar um
tempo maior para
conseguirmos
oportunidade de
reparação
direta, não
tenhamos dúvida
de que,
fortalecidos
pelo amor em
ação,
conseguiremos
ultrapassar
barreiras
íntimas,
tornando-nos,
por fim,
benfeitores não
apenas destes,
mas de muitos
outros que
cruzarem os
nossos
caminhos.
Referências
bibliográficas:
LELOUP: J. Y;
WEILL, P.;
CREMA, R.
Normose: a
patologia da
normalidade. São
Paulo, Thot,
1997.
KARDEC, A. O Céu
e o Inferno,
Código da Vida
Futura, p.94,
Tradução de
Manuel
Justiniano
Quintão, 42ª
edição; FEB; Rio
de Janeiro,
1998.
___________O
Livro dos
Espíritos, 1ª
edição
comemorativa do
sesquicentenário,
Tradução de
Evandro Noleto
Bezerra, FEB,
Rio de Janeiro,
2006.
ROUSSEAU, J.J.;
Emílio ou Da
Educação;
tradução Roberto
Leal Ferreira,
3ª edição, São
Paulo, Martins
Fontes, 2004.
WEBER, Max. A
Ética
Protestante e o
Espírito do
Capitalismo. São
Paulo, Martin
Claret. 4ª
edição, 2001.
XAVIER, F.C.;
Boa Nova,
capítulo Maria
de Magdala, pelo
Espírito
Humberto de
Campos; FEB; 3ª
edição, Rio de
Janeiro, 2008.
Fonte: O Consolador, uma Revists Semanal de Divulgação da Doutrina Espírita
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