ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG
XVI – O emprego e o Estado
Eu lhe
disse que trabalhava no Estado? Trabalhava. Tinham cavado, politicamente, para
mim, um cargo público. Naturalmente tinham pensado lá com os seus botões:
– Esse
camarada só vai pra frente se lhe dermos um emprego público.
Ainda não
pude me ater a essa filosofia do “vai pra frente” que tão comumente se ouve.
Confesso que de qualquer maneira eu tinha que ir pra frente, já que a vida não
para. Não sei se iria bem ou mal. Mas iria. Inevitavelmente iria para a frente.
Dizem os
Nélsons Rodrigues deste país que só há uma verdade eterna: “É que ao dia de
hoje sucederá, inevitavelmente, o dia de amanhã”.
Às vezes
nós não o apanhamos na vida. Mas ele sempre nos apanha.
Mas
arranjaram-me um emprego. Coisas de política mineira. Eu era um eleitor. E o
pessoal em quem eu votava resolveu me presentear. Fui ser “auxiliar técnico de
arrecadação”. Pomposo nome, não acha? Coisas de Minas Gerais.
Até hoje
não entendi bem por que “auxiliar” e “auxiliar técnico”. Da arrecadação estava
claro. Nós arrecadávamos os tributos do Estado. Em contraprestação o Estado nos
pagava também um tributo. Minguado, sempre curto, mas dava pro pão.
Mas
auxiliar de quê? Ou de quem? Nós não auxiliávamos nada. Quem auxilia, auxilia a
alguém! Nós é que fazíamos o serviço sozinhos. Como auxiliar?
E o
técnico? A técnica pressupõe um preparo, um adestramento, um estágio, um
estudo, uma adaptação.
Comigo
não houve nada disso. Pegaram-me pelo laço e me jogaram lá dentro.
Depois eu
vi que o negócio era mais ou menos assim mesmo. Que os menos capazes é que eram
os favorecidos, desde que a política dominante os indicasse.
Vi isso,
não em contato com os meus colegas, que são os mais eficientes nos respectivos
cargos. Vi, depois que estava lá dentro, através de observações efetivas.
Meus
colegas, repito, eram excelentes. Honestos, trabalhadores, cumpridores de seus
deveres. Todos muito bons e muito compenetrados de suas obrigações.
Junto
deles passei os bons anos de minha vida.
O chefe
era o Paulo Linhares. Coletor. Muitos anos a serviço do Estado, tendo entrado
para a administração fazendária muito cedo, cedo também chegou ao padrão Z, o
último da carreira.
O chefe era
um moço simpático, louro, alegre e bastante cordato. Tinha um defeito de dicção
que nos botava um pouco perturbados no início de nossa carreira. Depois, com o
tempo, fomo-nos acostumando, e adivinhávamos de pronto a ordem que ele emitia.
Ele resmungava no fundo, e o papel, de imediato, era posto em sua mesa.
Tinha um
vício. Não era muito expedito no assinar os talões. De modo que era comum
acumularem-se papéis sobre a sua mesa, de tal modo que a Nina a apelidou de
“secção-do-encalhe”. Quanto tempo perdíamos à espera de que o Sr. Lery, nome
que depois lhe pusemos, porque ele fez uma porta de duzentos quilos cair em
cima de um visitante, chamado Sr. Lery, e que lá fora, incumbido de uma revisão
nos valores imobiliários rurais. Contribuintes se avolumando na sala de espera,
o calor apertando cada vez mais, e os talões dormindo serenamente na secção do
encalhe.
A Nina de
que lhe falei há pouco era o encanto da repartição. Admirável figura de mulher
que todos nós amávamos com o respeito e a veneração que se devem a uma santa.
Jamais a
vimos triste ou desanimada. Nos quase nove anos de convivência diária, vi-a
sempre com o mesmo sorriso de compreensão e de amizade. Mesmo depois de casada,
com o colega Ulisses Linhares, enfrentando agora as dificuldades de mãe e de
dona de casa, foi sempre a mesma. Afável, meiga, atenciosa, sorridente,
eficiente, tranquila.
Dificilmente
encontrarei em minha nova carreira uma mulher tão completa, e tão perfeita em
tudo que faz. Com ela aprendi a admirável lição de servir a todos com o sorriso
nos lábios.
O
subchefe, isto é, o Escrivão, é a veneranda figura do Sr. José Simonini, que
Viçosa exportou para Astolfo Dutra. Homem absolutamente tranquilo. Ao vê-lo
poder-se-ia dizer: “Está aí um homem com a vida que pediu a Deus”. Católico fervoroso,
jamais teve para com os dois espíritas que baixaram na sua repartição a menor
palavra de censura ou de desapreço.
Espírito
jovem, tinha sempre uma anedota para amenizar o cansaço dos números, nas horas
das nossas obrigações.
Sua letra
era um desenho. E o caixa geral da repartição lá está guardado como uma
relíquia muito bem guardada.
Vivia
para a repartição. De manhã à tarde, seu habitat preferido era lá. Às vezes nos
perguntávamos, bisbilhoteiros de sempre: O que será que o Sr. Simonini vem
fazer aqui, toda manhã? Há tanto serviço assim?
Provavelmente
lá iria desenhar no seu Caixa Geral, caixa que eu andei enfeiando com o
balancete de dois meses.
Seu amor
predileto era o que ele chamava de “a
preciosa”. A preciosa era a fita da máquina em que estavam relacionados
todos os valores da despesa e receita ocorridas no mês. A preciosa, segundo
ele, era a bússola do Balancete. Se ela jogasse, tudo estava certo. Se algum
erro, porventura, houvesse, a preciosa inevitavelmente acusaria.
Depois eu
acabei desmoralizando a preciosa adotando um processo mais rápido. A princípio
ele não gostou da ideia. Diabo, vinha eu com minhas inovações matar-lhe um amor
tão antigo. Depois, acabou concordando e ficou sepultada para sempre a sua
divina “preciosa”.
De
Simonini trouxe, além de outras, uma feliz recordação. Eu que esperava dar-lhe
alguma coisa, pela atenção com que sempre me distinguiu em todos os meus dias,
fui surpreendido com um necessário presente: deu-me um terno, cortado e
costurado, por ele próprio, com toda a arte e perícia. Antes do emprego público
ele se notabilizara em sua terra como um excelente alfaiate.
Coitado,
viu que eu não tinha lá boas roupas e, apressou-se, comprando do mascate
Zezinho um lindo corte de casimira inglesa que
transformou num belíssimo e moderno terno. Parece que ele estava
adivinhando que pouco tempo depois nos separaríamos para sempre.
Esse
mascate de que falei há pouco é o outro auxiliar da repartição, o ilustre
cidadão José Espíndola Filho, brasileiro, vacinado, casado e pai de seis
filhos.
Nós o
chamávamos nosso “Consultor Jurídico”.
Muito eficiente na sua função, tinha um hobby: ler, religiosamente, as revistas
“O Fisco em Minas”, para estar em dia com a legislação fazendária.
Creio que
esse amor à legislação nasceu, em Cataguases, em contato com o Coletor
Estadual, Sr. Humberto Henriques, numas aulas que lhe andou ministrando, com
vistas ao concurso que teríamos de fazer em busca da estabilidade. Das aulas do
Sr. Humberto para cá, o homem se doutorou e, quando ele fala, todos nós
murchamos as orelhas.
É um
cabra que está sempre nervoso. Está, não. Parece estar, porque, no fundo, é um
coração de passarinho. Pintávamos o sete com ele, e a todas as nossas
brincadeiras respondia com um sorriso satisfeito.
É um
camarada bravo. Com ele não se pode abusar, porque é malcriado como o Iracytho,
embora nele predomine o sentimento dominante do amor às boas causas e à
caridade. Nunca se esqueceu de entregar-me, mensalmente, a contribuição que ele
próprio se fixou, em favor do nosso asilo de órfãs.
De vez em
quando ia a São Paulo, para onde foi obrigado a transferir a família, com
vistas à educação de seus filhos, e de lá voltava com uma mala nas costas,
cheia de bugigangas. Da calça de mulher ao brinco, tudo se achava lá dentro. E
eu morria de rir, vendo o Zezinho, com
aquelas peças íntimas para vender.
O outro
auxiliar era o Sr. Mário Vitoriano, excelente orador e grande violonista, que
com sua voz sempre alta dava à repartição uma aparência de hospício. Não
perdoava ao Paulo, com quem discutia sempre a propósito dos lucros das terras
do Jacaré. O Paulo argumentava, fazia cálculos, escrevia números, mas o Mário,
imperturbável, o encostava à parede. Muito brincalhão, memoráveis debates
tivemos a oportunidade de ver, mas o de que mais me lembro foi de uma questão
levantada, por ele, a respeito de um filho louro de uma mocinha morena que
tinha trabalhado na casa do Paulo e que casara com um moço também moreno.
Não sei
se já se encontrou uma explicação mais viável para o caso. Mas dessa discussão rimo-nos
a valer.
Esses
foram os companheiros que me receberam naquele dia de trabalho, após o célebre
reabastecimento espiritual. Com eles convivi, de perto, quase nove anos e de
nenhum, durante todo esse tempo, tive a menor razão de queixa.
É
provável que para eles eu não tenha sido tão bom quanto o foram para mim. O
certo é que de todos me lembro com saudade, deles guardando as melhores
recordações.
Depois
surgiu o Arnaldo, garoto contratado pelo Simonini, nas férias do Paulo, e cuja
permanência, como contínuo, foi confirmada pelo titular da chefia.
E bem
depois, já ao apagar das minhas luzes, junto deles, lá chegou o Roberto Garoni,
em período de estágio, enquanto aguardava uma nomeação prometida .
Naquele
porão da casa do Sr. Alberto Pereira Menezes, junto de gente tão amiga, vi
passar um pedaço muito importante de minha vida. E só uma coisa me tiraria de
lá. Uma coisa presa à origem de meu ingresso e que me tolhia, demasiadamente, a
liberdade.
Nasci
para ser livre. Todos os homens nascem para ser livres. Não há bem maior que a
liberdade, principalmente a liberdade de pensar. E foi por buscá-la que troquei
uma carreira por outra.
XVII – Nasci pra ser livre!
Eu já
explico.
Foi uma
manobra política que me deu aquele emprego. E eu fiquei inevitavelmente preso,
grato que sou, aos que me distinguiram com a nomeação.
Penso,
com Rui Barbosa, que só não muda o homem que não evolui. E quanto mais o homem
muda, maior é o sinal de que ele procura acertar.
Tenho
dito diversas vezes que o importante, em nossa vida, não é acertarmos sempre,
mas errar menos, procurando sempre agir
melhor.
Um homem
que estaciona é um cérebro que se enferruja. Um homem, cristalizado dentro de
determinados princípios, é uma massa sem cor e sem vida. O homem, para
dignificar a sua posição, tem que ser dinâmico. Dinamismo significa evolução.
Principalmente dinamismo nas ideias.
Tudo muda
na vida. Se as árvores permanecessem imutáveis jamais chegariam à divina
explosão dos frutos. É por mudar que a mocinha de hoje se faz mãe amanhã. É
mudando, e mudando sempre, que se passa da infância para a juventude, para a
maturidade, para a velhice e se atinge a eternidade.
A mudança
é tão fundamental em nossa vida que Alexis Carrel afirmara que nenhum homem é o
mesmo em dois segundos sucessivos. Tudo se transforma em nós. As células se
substituem, os tecidos se modificam, os átomos se renovam, porque vida é
sinônimo de renovação e de mudança.
Há quem
diga que devemos mudar nem que seja para pior. Não vou a tanto, embora compreenda e aceite o
ponto-de-vista. O que digo é que devemos sempre mudar, claro que para o melhor,
ou para aquilo que supomos o melhor.
Na minha
posição de servidor público, lá posto da maneira que fui, eu era um homem
amargurado, triste, abatido. Injustiças e mais injustiças desfilavam-se ante
meus olhos, sem que eu pudesse, ao menos, levantar o clamor da desaprovação.
Mesmo o
concurso, a que depois me submeti e que me deu a estabilidade funcional, não
conseguiu apagar em mim aquelas reações desagradáveis; e meu irresistível
desejo de mudar chocava-se sempre com o meu
sentimento de gratidão.
Meu mal
era irreversível. Eu me consumia, a cada novo dia, no mais lamentável de todos
os tédios. Vi-me afastar de meu pai e de meus irmãos e seguir um caminho que eu
sentia não ser o melhor, para, através do voto, pagar aquela dívida que me
consumia.
Eu estava
sufocado. Parece-me que só duas pessoas sabiam dessa angústia. Duas não, três:
minha mulher, o Jarbinhas Scher e o Zezinho.
Eis senão
quando surge no horizonte do DASP um concurso para escrivão federal. Cá disse
comigo mesmo: “Nesta eu me embarco e adeus Astolfo Dutra. Vou readquirir lá
fora a liberdade que perdi aqui dentro”.
Para trás
fiquem meus amores e minhas amizades. As árvores em que tantas vezes subi nas
minhas brincadeiras juvenis, as águas em que tantas vezes me banhei, as ruas em
que ficaram, palmo a palmo, as minhas emoções mais fortes, os olhares que me
fitaram com tanta simpatia nos dias de festas, as casas em que eu aprendi a ver
um prolongamento da minha, tudo isso que representa o baú das minhas mais caras
recordações, vale menos do que a liberdade que eu procuro.
Nasci
para ser livre. Todos os homens nasceram para ser livres. Quero a
liberdade dos
pássaros para conhecer outros céus e amar outras estrelas e apertar nas
minhas mãos
as mãos de outros seres, mas sobretudo para ser eu, sozinho, o
verdadeiro dono de mim mesmo. Sei que durante muito tempo fui “o filho
do Astolfo” de que, na
realidade, me orgulho. Só muito tempo depois acabei sendo reconhecido
como eu
mesmo, Arthur Bernardes construindo sua história. A gente sabe quão
importante
é a influência dos pais nos caminhos do filho. Vezes há que essa
influência é
tão forte que o filho dela não se liberta, atravessando uma existência
inteira
sem marcar sua passagem na Terra.
Nota:
O texto acima faz parte do livro intitulado “A
história que eu sei contar”, escrito por Arthur Bernardes de Oliveira e
concluído no dia 28 de julho de 1964. O livro compõe-se de 20 capítulos e está
sendo publicado aqui ao longo de dez semanas, sempre aos sábados. A primeira
parte foi publicada neste blog no dia 28 de julho de 2013.
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