ARTHUR BERNARDES DE OLIVEIRA
tucabernardes@gmail.com
De Guarani, MG
XVIII – O impulso e a flor
Creio que todos notaram que naquela terça-feira eu, ao entrar na
coletoria, trazia uma cara diferente.
Não sei se lhe falei a respeito de uma observação que fizeram sobre o
meu sorriso.
Há uma diferença fundamental entre o mano do meu coração – o Amaury – e
mim. Dizia o Panza que, quando o Amaury ri, todos os dentes se mostram claros.
Aqueles dentes branquinhos, sadios, admiráveis. E tem-se a impressão de que o
Amaury não tem apenas 32 dentes, o que seria
normal, mas 64, tal o brilho que através do seu sorriso invade a nossa
alma e encanta os nossos olhos. É um sorriso aberto, franco, espontâneo de quem
não teme mostrar pela boca a alma linda que tem.
O meu sorriso, dizem, é um sorriso triste. Talvez motivado pela pouca
tranquilidade que me inspiram os meus sentimentos. Sei lá. Talvez faça um dia
uma pesquisa interior para verificar se há alguma verdade na observação e se as
causas são as que eu suponho.
Mas eu entrei na repartição com um sorriso alegre.
Eu estava, naquele dia, como dono de um segredo, que quisera contar para
todo o mundo.
Acho que, ao fim da tarde, cheguei a contá-lo ao Zezinho.
E foi com um prazer irresistível que ele me ouviu dizer que eu tinha me
reencontrado com o meu destino.
Amigo bom e constante, conhecia de perto as minhas buscas infindáveis em
torno de uma vida. E torcia, talvez como ninguém mais, para que eu formasse o
meu lar e começasse a construir esse mundo de emoções que uma família feliz
pode desfrutar.
As horas passaram rápidas como nunca. Pouco tempo depois já estava eu
pronto a recomeçar com ela os planos que iniciáramos na boa manhã.
Às sete e meia da noite, o salão
estava completamente cheio. Gente em toda a parte, inclusive nas janelas.
Fomos para o fundo do palco aproveitar a insubstituível poltrona das
nossas cenas.
E lá ficamos todas aquelas horas, esquecidos do mundo, mãos dadas e
trêmulas, a contar os minutos que a noite nos dava.
Lá fora, no salão, um orador declamava. Era o poeta Sebastião Lasneau,
com dicção sonora, enlevando a plateia, através de “O Espiritismo na Arte”.
Nem mesmo os seus lindos poemas conseguiram romper as minhas meditações
e interromper a minha tranquila felicidade.
Depois, eu cheguei à conclusão de que o amor é o mais belo poema, razão
por que as belezas que ele ia apresentando, profusamente, não podiam atingir as
rimas que nós estávamos tecendo, no silêncio dos olhares que trocávamos.
Aquela mãozinha macia e suave, presa entre as minhas mãos, deixou-me no
espírito uma marca inesquecível.
Hoje, casados há sete anos, às vezes me surpreendo, com saudades
daquelas mãos. Procuro-as avidamente e lá estão elas, as mesmas, com a mesma
suavidade de então, conservando intacto o mesmo calor de antes.
Nem os serviços do lar, nem os calos naturais das obrigações caseiras,
conseguiram matar nelas o admirável encanto daquela noite.
Terminara a reunião e a caminhada de volta à casa se deu com o mesmo
enlevo e as mesmas emoções.
Ainda nesta noite, eu continuava com os mesmos desejos da véspera. É
certo que a suavidade das mãos e a naturalidade com que ela me deixou
acariciá-las, tinha criado em mim um impulso repressivo.
E o desejo de abraçá-la, confesso, era mais forte que o impulso. Por
outra coisa não esperava, senão que chegássemos à porta.
Suavemente a tinha eu censurado pela maneira abrupta com que se
despedira de mim e entrara pela casa, na véspera.
Disse-lhe jeitosamente que os namorados costumam parar uns instantes
antes da despedida final.
De modo que ao chegarmos à porta, entrados todos, ficamos os dois
sozinhos cá fora. Aí foi que eu me desmontei.
Inocentemente ela me disse:
– Pronto, hoje eu esperei uns minutos para a nossa despedida. Como você
quer, ou o que quer você para a despedida?
– Eu queria beijá-la!
E ela me deu a boca para beijar, com uma inocência que matou em mim, na
hora, toda aquela vontade louca de apertá-la.
Encostei nos dela os lábios meus e estava terminada a nossa segunda
noite.
XIX – Não vi nada mais!
A partir daquele instante eu fizera dela a minha noiva.
Havia, nessa época, uma profunda diferença mental entre mim e minha
noiva. Não só pelos sete anos que nos separam, mas sobretudo pela alta soma de
experiências que eu tinha adquirido nos meus vai-e-vens da vida.
Aos 23 anos, eu já era um homem maduro. Agora estava com 25. Se até os
vinte e três a vida se encarregou de me amadurecer, dos 23 aos 25, meus
esforços pessoais encarregaram-se do resto.
Entusiasmado pela literatura, li, nesses dois anos, mais do que em todo
o resto, inclusive nos anos que se sucederam. Reputo a fase mais importante dos
meus estudos. É a esse período que eu devo a pouca coisa que sei.
Então estávamos assim um diante do outro: o pecado em face da virtude,
ou se quiserem o jardineiro encanecido ao lado da flor que desabrochava.
Tive que fazer um esforço enorme para trazê-la da ingenuidade do seu
desabrochar até a altura em que me encontrava.
Aqui, antes de prosseguir, já vou responder a uma objeção.
Muitos são os que não creem mais na ingenuidade das moças. E alegam
razões absolutamente pertinentes.
Livros, revistas amorosas, filmes, novelas radiofônicas e uma série de
outras diversões mais ou menos dignas estariam matando nas flores o doce
perfume da inocência.
De fato, não se pode censurar quem pensa assim, tais e tantos são os
casos que nos surgem como exemplos.
Entretanto, há a considerar-se uma coisa muito importante. Se no
entender, ou no compreender, a ingenuidade se trai, no agir, quase nunca isso
ocorre.
Aquela anedota do netinho que falou para o irmãozinho menor, a propósito
de uma fuga da avó: – “Coitada, a vovó não sabe que a mamãe está esperando
nenê!” – funciona, em parte.
O netinho sabe que a mamãe vai ganhar um nenê. Mas ele não sabe como
fazer para ganhar o nenê. O que houve foi apenas o seguinte: deixou de
acreditar na cegonha, e isso já é um progresso, mas não a eliminação total da
inocência.
De modo que eu tive de me aproximar muito da idade e dos pensamentos de
minha noiva. Era, embora difícil, mais fácil eu me chegar a ela, do que
trazê-la até onde estava.
Apesar desse meu enorme esforço, até hoje ela me censura e reclama
dizendo que eu não lhe deixei viver a despreocupada alegria de sua mocidade.
Mas a semana passou. Dizer, aqui, o que foram aqueles sete dias
inesquecíveis, seria repetir as sempre renovadas diabruras de Cupido. E a
repetição talvez me parecesse monótona para você.
Mas há uma passagem que eu não posso deixar de recordar, mesmo porque,
no meu entender, ela funciona em defesa da tese que acima levantei. A da
ingenuidade e da inocência que culminaram por modificar meus modos de agir e de
pensar.
Elizabeth nunca tinha usado um vestido justo. Era a menina das anáguas.
Inúmeras, infinitas anáguas, imensas anáguas para armar as saias rodadas que
escondiam a admirável escultura de seu corpo.
Íamos dançar, me parece, que no sábado, véspera do fim. E eu lhe pedira
que não pusesse anáguas. Não desejava que tantos panos e tantas roupas houvesse
a separar nossos corpos. Ela prometeu e foi se vestir.
Quando voltou, a impressão que eu tinha é que não fora atendido no meu
pedido. Disse-lhe isso. Ela afirmou que eu estava enganado. Conversa vai,
conversa vem, pedi-lhe que me deixasse ver.
– Pois não, se duvida, pode ver.
E eu levantei mansamente a sua saia. Surgiram duas coxas imensas. Lindas
como a natureza, perfeitas, grossas, torneadas, de um matiz róseo, mais belo do
que a saúde.
Confesso que até hoje não fiquei sabendo se ela estava ou não estava de
anágua.
Agarrei-a com tanta força e tamanho frenesi, que ela me disse assustada:
– Que é isso?!!!
– Nada. Vamos dançar.
Hoje, analisando bem a minha vida, às portas do meu trigésimo terceiro
aniversário, vejo que assisti a espetáculos memoráveis. Viajando, bastante,
tenho observado a natureza em suas mais variadas manifestações de beleza. Mas,
confesso: da fonte bailarina de Poços de Caldas aos encantos indescritíveis da
Guanabara, nada ficou tão bem guardado como definição de beleza quanto aquelas
coxas que foram crescendo diante de meus olhos extasiados.
XX – Guarani e os fantasmas
A minha vida ficou dividida em duas partes: uma, o corpo, arrastado
preguiçosamente pelas ruas, em
Astolfo Dutra; outra, o espírito, leve como a pluma e ágil
como o raio, na cidade de Guarani, trinta quilômetros além.
Do que foi essa divisão retratam bem as cartas que eu escrevi, quase
diariamente.
Abelardo e Heloísa não se escreveram tanto, porque se amaram menos do
que nós.
Foram cinquenta cartas, que o mestre e artista Carvalhinho as definiria,
mais tarde, como cinquenta hinos de louvor ao amor. Estão todas guardadas, com
o mesmo carinho de antes. Algumas, ou quase todas, ela as sabe de cor. Um dia
você as poderá ler também. Creio que ela o permitiria com prazer.
Meu pai, por sugestão do Amaury, comprou uma baratinha Ford 31, visando
às compras na safra.
Não sei se lhe disse que meu pai é atacadista de fumo. Atacadista de
fumo é o comerciante que funciona como intermediário entre o produtor agrícola
e o varejista que trabalha com o artigo.
Eu disse artigo por amor à técnica. Mas no dizer dos viajantes, fumo não
é artigo, fumo é bosta. Fuma não se vende: empurra-se.
Em minha terra todo mundo só mexe com fumo. Fumo em corda. Come-se
fumo, respira-se fumo, a religião é o fumo. Foi o fumo que construiu a cidade e
lhe trouxe conforto. Só o fumo poderia ter dado à cidade aquela fisionomia de
abastança que impressiona os que lá chegam.
Tudo lá é fumo. A mamadeira é um palmo de fumo. O bico é uma perna de
fumo. A cama é um rolo de fumo. A vida é um fardo de fumo.
Vivendo em torno disso, na época da colheita, ou melhor da safra, em si,
que é quando as folhas já foram enroladas e “fiadas”, como por lá se diz, a
cidade vira um hospício. Carros sobem e descem à procura de negócios. A
concorrência desconhece limites. Quase tudo é permitido nesse tipo de comércio.
Cotias, fugas, tapeações, segundo misturado com ponteiro; baixeiro misturado
com segundo; soca, soquinha, socão. Só vendo de perto, para entender bem. Jipes
e automóveis rasgam o município em todas as direções. Todos procurando formar o
seu estoque e estabelecer a sua boa média.
De modo que para enfrentar bem a matroca, nada melhor do que um jipe ou
um “ford” 29.
Foi por isso que se fez a tal compra.
Não sei quantas arrobas ela conseguiu descobrir. Sei que, infinitas
vezes, ela me levou, às vezes sozinho, outras vezes com o Laviola ou com o
Abilinho, até as portas da saudade.
Em Guarani, principalmente, mas também no seio de minha família, não
deviam fazer bom juízo a meu respeito. Pelo seguinte: Lá chegando, eu e
Elizabeth não nos separávamos um só instante. Convites vinham. Para um baile,
ou para um aniversário, ou para alguma reunião. No mais das vezes para o
cinema, na época dirigido, controlado e administrado pela nossa gente.
Eu não aceitava nada. Não queríamos outra coisa senão ficarmos sozinhos
no canto da sala,um em frente do outro, mãos dadas, rostos unidos trocando-nos
juras e carinhos. Às vezes o frio apertava e nós fechávamos a janela. Às vezes
o frio não vinha e nós também fechávamos a janela. Aquela janela era a porta do
mundo. Fechada, nós ficávamos sós como queríamos, dentro daquele mundo que era
só nosso.
Quantos sustos pelo inesperado aparecimento da tia Elza. Outras vezes,
era a velha Pipina que eu consegui, com arte e delicadeza, atrair para as
minhas simpatias. Ela pisava de leve, com o seu gasto chinelo de pano e, embora
o ouvido de pé, quando menos esperávamos lá estava aquele fantasma magro em
frente de nós. Depois que eu a conquistei, nunca mais me assustou.
Mas houve também, por amor à lógica, o fantasma gordo: a Yara! Quantas
horas perdemos de ternura, por termos ao nosso lado, aquela massa gorda a
atormentar nossos sonhos. Acho que ela nunca desconfiou da inoportunidade de
sua presença. Porque se repetia sempre, inevitavelmente. Até que um dia
resolvemos mandá-la às favas.
Tia Teresa era um encanto de pessoa. Voz trêmula, olhos também trêmulos
e bons, jamais deixou seu quarto para espantar os pombinhos. Dona Ladinha, a
discrição em pessoa. Só
depois de tossir, ou de ficar na sala uns dois minutos parada, é que olhava pra
nós. Temia ela, coitada, ver um moço que ainda não conhecia tão bem, com os
lábios colados nos lábios de sua filha. Faço justiça a essa discrição porque,
como vim a saber depois, ela não aprovou com muita presteza o novo namoro da
filha. Sonhara outro genro com quem tenha convivido mais tempo e por quem
tivesse mais simpatia e admiração. Nunca a culpei por isso. Sei que como mulher
previdente, acreditava que o mais certo é contarmos com o pássaro que está na
mão do que com os dois que estão voando. Apesar de sua preferência, nunca
deixou de nos tratar com muita atenção e gentileza. Eu percebia que não estava
diante de uma sogra que houvesse sonhado comigo. A gente percebe isso
facilmente, Mas rapidamente ela se transformou na nossa grande aliada, proporcionando-nos
encontros, facilitando passeios, pondo enfim a sua colher de areia no alicerce que se estava construindo.
Seu Ítalo era um homem distante. Temia-se em Astolfo Dutra que
ele pudesse censurar a filha pela semana de namoro. O poeta Lasneau que
aprovara nossa decisão tranquilizou-nos com a sua sabedoria:
– Podem deixar por minha conta. Elizabeth veio comigo e só eu sou o
responsável por tudo que possa acontecer. Não se preocupem. Eu vou conversar
com ele.
E deve ter conversado mesmo, porque, embora distante, sempre foi, na
família Baesso, depois da filha, o que sempre esteve mais próximo de mim.
Eu tinha a meu favor um handicap
precioso: ser espírita e filho de Astolfo Olegário de Oliveira que ele
conhecia muito bem. Meu pai, pela
correção de sua vida, e pelos memoráveis discursos que lá pronunciara,
facilitara em muito a minha infiltração naquela família.
- Fim -
Nota:
Com o texto acima encerramos a publicação do livro
“A história que eu sei contar”, escrito por Arthur Bernardes de Oliveira. O
livro, composto por 20 capítulos, foi publicado neste blog ao longo de dez
semanas. A primeira parte foi publicada no dia 28 de julho de 2013.
No próximo sábado, numa espécie de apêndice à
obra em causa, publicaremos aqui dois textos escritos recentemente em que Arthur fala sobre seus pais Anita Borela de Oliveira e Astolfo Olegário de Oliveira.
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