Sueli Caramello UlianoNoel e a Eternidade |
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O Presépio que tenho em casa está comigo há um bom tempo.
Comprei-o, ainda solteira, quando minha primeira sobrinha tinha pouco
mais de dois anos e passava boa parte do dia em minha casa. Meu intuito
era motivá-la para algo além do Papai Noel. Foi muito divertido montar o Presépio pela primeira vez, a começar pelo processo de desembrulhar as 18 peças que vieram enroladas em jornal, no meio de palha. A cada personagem que se revelava, a menina enternecia-se... De repente, a grande emoção: ─ Ah! É o Menino Jesus! ─ Não é não, querida! Olhe bem. ─ Hummm! ─ ela atentou para as asas do anjinho e mudou de idéia ─ Ai, tia, é claro, é uma pomba! ─ Não, não, querida! É um anjinho. – Ah! É. – e passando o dedinho no pé do anjo que aparecia sob a orla da túnica, sobre uma pedra, dirigiu-me um olhar desafiador: – ele tá descalço. .. – É, ele está descalço, mas ele é anjo, não fica resfriado... Apanhamos musgo no Centro Educacional da Móoca (o que foi uma aventura indescritível que havia de se repetir nos anos seguintes), apoiei sobre um móvel de madeira uma grande pedra de mármore, utilizei duas pedras grandes com traços de quartzo róseo cedidas por minha tia, do seu jardim, para fazer a gruta. Sobre as pedras, para suavizar, uns galhinhos de melindro. E os caminhos de areia, o lago de espelho... E as histórias que eu não apenas lhe contava aproveitando as peças, mas às vezes procurava ler para ela nos Evangelhos. Nasceu o Menino, a família reuniu-se para comemorar, trocar presentes e cantar villancicos, próprios da tradição espanhola. E os Reis Magos, que estavam na ponta da mesa, começaram a se aproximar, a cada dia um pouquinho, não fossem chegar antes do dia seis de janeiro. — Gaspar, Baltazar, Melchior... — Quem são, Renatinha? ─ Os Reis Magos. ─ E o que eles fizeram? ─ Eles viram a estrela e vieram ver Jesus, mas... ─ e a pequena fazia um ar de mistério e suspense ─ eles voltaram pelo outro caminho pra enganar o Herodes. ─ E o rei Herodes, o que fez? ─ Ele disse — e a pequena erguia o punho com violência — : eu mato esse Menino! ─ Uh! E São José, o que fez? ─ Ah! Ele se mandou! Pra onde foi mesmo que eles se mandaram, tia, pro Gip... Gipso? A essa altura eu já estava roxa de rir. Mas, pouco depois, quando minha mãe insistia para que ela comesse, ela não teve dúvidas e murmurou: ─ Vó, se manda pro Gipso. Tive de continuar roxa, tentando não rir: ─ Não fala assim com a vovó... E a minha mãe, curiosa: ─ O que foi que ela disse? ─ Mandou a senhora para o Egito... — Nossa! Renatinha... Que maldade com a vovó! E a pequena apenas mordia o lábio e desviava os olhos. Onde raios seria esse tal Egito? Casei alguns anos depois e levei o Presépio comigo. A Renata a essa altura já tinha duas irmãs: a Fernanda e a Ana Cristina. O seguinte episódio deu-se quando a minha filha tinha três anos e oito meses. Dois anos acima dela, a Fernanda e, exatos dois anos abaixo, a Ana Cristina. Quatro primas que viviam no maior tititi, principalmente as três menores. Passei a montar o Presépio no meu apartamento e a minha filha, assim, aprendia as primeiras noções da história do cristianismo. Fez com as próprias mãos, e por iniciativa própria, uma manjedoura de massinha colorida. Deixamos secar até endurecer e até hoje se conserva. No entanto, também comecei a ver o Papai Noel com menos preconceito, sem carimbá-lo com a pecha de símbolo consumista. E minha filha, no embalo do clima natalino, haveria sempre de esperar pelo presente do bom velhinho, que chegaria na madrugada do dia de Natal e seria depositado junto ao Presépio e à arvore. Naquele ano, como sempre fazíamos, fomos, o pai, eu e a pequena, à Missa de Natal, às 20 horas, com adoração do Menino e tudo mais. Voltamos para buscar os presentes e já passava das 22 horas quando chegamos à casa dos meus sogros, para cumprimentá-los. Era uma visita rápida, pois voltaríamos no dia seguinte para o almoço. Dali saímos para a casa de minha mãe, onde toda a família estaria reunida para a Ceia. Noite escura e chuvosa. Pelas ruas do Tatuapé, raríssimos carros cruzam conosco. Estamos na verdade completamente sós no breu da noite quando, a distância, percebemos uma figura especial que avança pela calçada, a passos largos, um saco vermelho às costas. Meu marido, percebendo a magia do momento, praticamente parou o carro, o vidro abaixado, a minha menina levantou-se do banco de trás, os olhos cravados naquele Papai Noel mais do que nunca enorme, imensamente barbudo, que surgia da noite e a encantava. Ele olhou para o carro, acenou e cumprimentou-nos a caráter: — Oh! Oh! Oh! Feliiiz Nataaal! — Feliz Natal! — respondemos em uníssono. E ele continuou apressado, com tanto trabalho pela frente... A minha menina acompanhou-o com os olhos, por uns instantes, depois balançou a cabeça e conferiu a própria convicção: — As minhas primas... Elas não vão acreditar! Não sei se preciso deixar claro aqui que não acredito em Papai Noel. Mas acredito no encanto. Temos necessidade de ficção porque precisamos experimentar o que ultrapassa o real, o natural. Mas por que procuramos algo além do real, do natural? Quem sabe são as pistas mais palpáveis que temos de que fomos criados à imagem e semelhança do Criador. Ou não teríamos esse poder inventivo, essa capacidade de sonhar. Não ignoro que há os que dizem, depreciando a fé, que aqueles que um dia acreditaram em Papai Noel, da mesma forma depois acreditam em Deus. Mas eu inverto esse raciocínio: crer em Papai Noel — ou crer nos Reis Magos exercendo esse papel — revela a capacidade humana de buscar e crer em algo que a ultrapassa. É a nossa impotência em busca do Todo Poderoso; a nossa carência em busca da plenitude do Bem, da Verdade, da Beleza. Não sei quando minha filha e as primas deixaram de acreditar em Papai Noel, mas naquele Natal, naquela noite chuvosa e escura, tivemos uma pequena amostra de como será o momento em que nos cairão as escamas dos olhos e veremos a eternidade... Sem medo dos herodes que nos ameaçam, sem precisar fugir para qualquer Egito e sem a menor possibilidade de confundir um Anjo com uma pomba. |
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Sueli Caramello Uliano , mãe de familia, pedagoga, Mestra em Letras pela
Universidade de São Paulo, Presidente
do Conselho da ONG Família Viva, Colunista do Portal da Família e consultora para
assuntos de adolescência e educação.
É autora do livro Por
um Novo Feminismo pela QUADRANTE, Sociedade de Publicações
Culturais.
e-mail: scaramellu@terra.com.br
Publicado na revista Ser Família em nov/dez/2011Publicado no Portal da Família em 16/12/2012 |
sexta-feira, 28 de dezembro de 2012
O Papai Noel e a Eternidade
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