Dolorosamente consciente de sua limitação, Rogério o pintor cego, preferia, no entanto, as grandes superfícies: se tenho de me iludir, diz:ia, prefiro fazê-lo em larga escala. Trabalhava muito; acordava cedo e de imediato entregava-se à tarefa do dia, previamente discutida com sua esposa Zea, conselheira prestimosa auxiliar: era ela quem, na verdade, manejava os pintcéis, enquanto ele dava as instruções: vamos começar com verde-garrafa... Quero um traço, num ângulo de quarenta e cinco graus, indo da direita para a esquerda... Quero agora um círculo e três pontos azuis... Quero o esboço de um rosto, em perfil... Quando terminavam, ele perguntava, com mal contida ansiedade:
_Que fiz? Que criei?
Na hora que se seguia, Zea dedicava-se a explicar, com muita diligência, o que via na tela. Rogério exigia absoluta objetividade, não admitindo comparações ou metáforas. com os anos, porém, Zea tinha transformado sua capácidade de descrição numa verdadeira arte: era perfeita a correspondência entre imagens e palavras, entre imagens e inflexão de voz, entre imagens e ritimo da fala. O que seria de mim sem você, dizia Rogèrio, num tom que, apesar da admiração, traía um pouco de rancor. suspeitava que Zea estivesse a traí-lo, criando suas próprias formas de expressões, usando a pintura como simples pretexto para a verbalização. E no entanto Zea amava o marido; sabia que um dia o mundo reconheceria o talento dele.
Quando Rogério morreu, chorou muito. Mas acabou casando de novo, com Reinaldo, o pianista que havia perdido as duas mãos na explosão de um bujão de gás. Os amigos que assistiram à cerimônia notaram o inquieto movimento dos dedos de Zea. Mas não se espantaram: sabiam que ela estava dedilhando um teclado invisível.
Fonte: Contos Reunidos Moacyr Scliar Ministério da Educação PNBEM 2008 FNDE
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