sábado, 19 de janeiro de 2013

“Se Deus nos deu inteligência, é para que façamos uso dela”

O estudioso espírita gaúcho fala sobre a questão da gestão
nas casas espíritas e diz que é preciso mudar o modelo organizacional de nossas instituições
Ivomar Costa (foto), radicado na cidade de Pelotas-RS, onde atua no Centro Espírita Fé, Esperança e Caridade, é administrador e consultor de empresas. Espírita desde os 12 anos de idade, ele nos fala na presente entrevista sobre o tema gestão da casa espírita, um assunto diretamente relacionado com sua vivência profissional.


Ivomar, fale-nos um pouco da sua relação com o movimento espírita.

Conheci o Espiritismo aos doze anos de idade. Participei em diversas atividades no centro espírita, mas minha formação espírita foi praticamente autodidática. Desde o momento em que conheci a Doutrina me dediquei a compreendê-la. Nos anos 80 morei no Rio de Janeiro; depois morei em Curitiba e em ambas as cidades tive oportunidade de frequentar boas instituições. Retornando a Pelotas, atuei no Centro Espírita Jesus e também contribuí com a LEP (Liga Espírita Pelotense), órgão coordenador do movimento local.  Atualmente trabalho no Centro Espírita Fé, Esperança e Caridade, no qual participo do Conselho Diretor.

A gestão das casas espíritas é um tema no qual você se debruça. Qual é sua relação com o tema?
A Administração é uma área do conhecimento que sempre me despertou interesse. A aplicação dos conhecimentos e técnicas da administração às instituições espíritas surgiu quando trabalhei na LEP. Naquela oportunidade comecei a perceber que muitos dos problemas dos centros existiam por desconhecimento de técnicas básicas de gestão e por causa de uma visão equivocada, segundo a qual para bem administrar o centro bastaria boa vontade. Comecei a estudar o tema, sempre com a preocupação de encontrar os pontos de contato entre a ciência da Administração e o Espiritismo. Para difundir melhor meus estudos e experiências a respeito do assunto, criei o blog “Espiritismo: Centros e Movimento”

http://centroemovimento.blogspot.com.br – em que procuro discutir os temas específicos dessa área do conhecimento.
 
Que benefícios e óbices você vê na prática das instituições espíritas em que dirigentes se perpetuam nos cargos?
Nas instituições espíritas, sejam os centros, sejam as federações, acredito que seja desnecessária a permanência prolongada nos cargos, bem como a vitaliciedade. Os maiores óbices provocados pela perpetuação de determinadas pessoas em cargos nas instituições espíritas é que com o tempo a contribuição dessas pessoas começa a diminuir e porque tal prática impede a formação de novos dirigentes. Com o tempo nossa criatividade tende a diminuir. O ambiente muda constantemente e os problemas mudam com ele, mas tendemos a repetir e a padronizar as soluções, mesmo que se mostrem ineficazes. Da mesma maneira que desenvolvemos apegos por coisas, pessoas e cargos, apegamo-nos a ideias. O melhor é ocuparmos o cargo, darmos a nossa contribuição e nos retirarmos, pelo menos temporariamente, para aprendermos com outras experiências. A alternância periódica de pessoas diferentes nos cargos é um processo de treinamento nas atividades diretivas. Quanto mais trabalhadores tiverem passado pela experiência, maior será a quantidade de pessoas aptas a darem continuidade à instituição.

Complementando a pergunta anterior, os encargos ou os cargos na casa espírita devem ser relevantes?
Proeminentes devem ser os encargos, as responsabilidades, os serviços que promovem o bem. Os cargos se tornam relevantes quando o seu ocupante o eleva pelo cumprimento fiel das suas atribuições. O cargo não pertence ao indivíduo que o ocupa, mas à comunidade que o instituiu. O dirigente deve cumprir diligentemente as tarefas que lhe foram comissionadas e entregar o cargo quando o seu mandato terminar, para que outros também tenham a honra de servir através dele.

Como você descreveria as práticas de uma gestão de casa espírita afinada com os ideais propalados por Allan Kardec?
Os exemplos de Kardec, como administrador, foram visionários e revolucionários. Ainda temos muito que aprender com ele sobre gestão. A doutrina espírita é um rico veio que não devemos abandonar para procurar soluções gerenciais fora. É importante o alinhamento doutrinário das instituições à doutrina. Por exemplo: o autoritarismo é uma prática totalmente contrária aos preceitos morais do Espiritismo. Uma instituição que não estabelece processos de discussão aberta e franca dos problemas que interessam a todos os associados, que não permite a rotatividade dos dirigentes, que não trabalha pela autonomização dos seus trabalhadores, está distanciada da doutrina. Faz outra coisa, não o que o Espiritismo ensina. A inconsciência sobre esse problema tem provocado desvios no movimento.

A realização de eleições para dirigentes na casa espírita não reforçaria a questão de facções e partidarismos, gerando a inimizade e a cisão?
O que leva à criação de facções nas organizações espíritas é o orgulho exacerbado, a falta de diálogo, de regras claras de alternância e governança. A inimizade é fruto da falta de entendimento da doutrina e de esforço para vencer as próprias imperfeições. Eleições são exercícios de democracia, são momentos em que a comunidade escolhe pessoas, grupos ou modelos de gestão que considera mais adequados à condução das suas atividades. Se bem conduzidas, elas serão momentos de aprendizado. A existência de grupos com visões diferentes é altamente saudável, desde que se mantenham em nível de diálogo sincero e fiéis à Doutrina. É um sinal de que a organização está viva. O problema é quando não existe diálogo, alternância no comando, discussão das finalidades, dos objetivos, das estratégias, e ninguém quer assumir os cargos de maior responsabilidade. Esta situação configura uma crise e o mais provável é o enfraquecimento da organização.

Os Espíritos em suas manifestações nas reuniões mediúnicas devem emitir opiniões sobre questões administrativas das casas espíritas?
Kardec esclareceu muito bem esta questão em O Livro dos Médiuns e em Obras Póstumas. Os Espíritos esclarecidos não se intrometem nas resoluções dos problemas administrativos de nossas organizações. Esta responsabilidade é nossa e não deles. Se fosse deles, então seria razoável pedirmos para que vivenciassem as nossas experiências reencarnatórias, o que seria um absurdo! O que eles fazem é nos intuir sobre os caminhos a seguir. Se o Espírito resolve apresentar suas opiniões, então não é esclarecido. Se o dirigente é o médium, ele deve, evidentemente, abster-se de dar comunicações sobre estes temas, para evitar mal-entendidos.

Sobre o papel de coordenação, seja da presidência das casas espíritas, seja das federativas regionais, você pensa que o trabalho de coordenação deve se focar no paradigma de integração/articulação ou em uma visão de estrutura diretiva, hierárquica?
Entendo que cada um dos modelos tem o seu espaço e são eles realmente necessários. O Codificador, em sua visão de futuro, já havia previsto estas situações. Lemos na Revista Espírita de dezembro de 1861 que ele defendia a autonomia dos centros. A autonomia implica uma organização específica. Numa casa espírita as linhas gerais de atuação devem estar previstas no estatuto e no regimento interno. As assembleias devem ser momentos de discussão, de debates, quando se firmam as convicções e se formam os consensos. Depois da tomada democrática de decisão, os dirigentes devem conduzir a sua implementação. São, portanto, dois momentos diferentes, um de articulação e outro de execução. Por isso, exigem competências e estruturas diferentes, porém complementares. Na articulação quem decide é o grupo, a decisão é colegiada. Na implementação, a autoridade é dos dirigentes que ocupam as funções hierárquicas, as decisões são singulares. Nas federações o processo deve ser o mesmo, mas sem obrigar os centros a adotar práticas com as quais não concordam ou não estejam preparados.

Que pensar da ideia de profissionalização das atividades espíritas, mormente as assistenciais, abolindo os voluntários, sob o discurso de aumentar a eficiência?
Parece-me uma ideia deslocada, pois vai contra as finalidades das instituições espíritas. Caso fosse integralmente implementada, seria a capitulação dos valores espíritas, espirituais, frente aos valores materialistas, imediatistas, portanto. Na história do pensamento administrativo podemos identificar duas grandes vertentes de valores. Uma coloca a eficiência, que busca a produtividade, às vezes a qualquer custo, como ideal máximo. A outra, ao contrário, prioriza o ser humano. É fácil ver qual delas está mais em consonância com o Espiritismo. Graças a Deus tudo evolui, e hoje existem conceitos ampliados de eficiência que levam em conta a satisfação das pessoas com o trabalho. Somente sob este novo entendimento se poderia falar em eficiência nas instituições espíritas. Se as nossas instituições são agências educativas do Espírito, então, é no mínimo estranho acabar com o trabalho voluntário. A lei moral do trabalho é uma das mais importantes. No trabalho voluntário as pessoas podem aplicar suas energias para o bem dos outros, libertando-se, mesmo que temporariamente, de atividades alienantes. Terminar com ele seria, portanto, ir contra uma prática educativa para tentar assemelhar nossas instituições às empresas. Nas instituições assistenciais deverá existir um núcleo técnico assalariado, seja por exigência legal, seja por necessidade de competências que os voluntários não apresentam. Esse núcleo, entretanto, deve ser mantido no nível do estritamente necessário.

Que pensar da importação irrestrita de práticas empresariais para a gestão da casa espírita?
Penso que é um erro introduzir acriticamente as práticas empresariais nas instituições espíritas. Ouso afirmar que em vários casos se cometem sérios desvios doutrinários. As empresas trabalham com a lógica econômica, que privilegia a reprodução do capital, o lucro, e não as pessoas. Mesmo que mudem os discursos e algumas práticas, na atualidade, para a empresa o ser humano ainda continua sendo um recurso de produção. Ele vale enquanto produz. A empresa se interessa pelo crescimento dele até o ponto em que possa contribuir para a eficiência, a produtividade e, por conseguinte, o lucro. Os centros espíritas são organizações que, por princípio, devem preocupar-se com os aspectos imortais do homem, pois são agências educativas do espírito. Logo, este enfoque deveria produzir práticas de gestão diferentes daquelas utilizadas nas empresas. Os centros, sem dúvida, podem aprender e até utilizar algumas teorias e técnicas aplicáveis às empresas, mas nunca sem antes realizar um inquérito profundo das bases filosóficas e políticas delas, pois no mundo empresarial não existem técnicas inocentes.

Que medidas a casa espírita deve adotar para garantir a lisura no uso dos recursos arrecadados por ela para a manutenção de suas atividades?
A lisura começa pelo projeto de arrecadação de recursos. O centro tem que dar prioridade total às atividades que impliquem trabalho dos seus associados. Não considero que pedir dinheiro para empresas ou realizar coletas de alimentos em supermercados, por exemplo, sejam atividades alinhadas com os valores doutrinários. Mas se isso for inevitável, o que em algumas situações realmente é o que ocorre, então o melhor é verificar todas as leis existentes e cumpri-las integralmente. Declarar e recolher todos os tributos que incidirem sobre as atividades. Depois, registrar todos os valores arrecadados, apresentar os relatórios ao conselho fiscal e empregar todos os recursos nas atividades para as quais foram destinados, e nas condições previstas.

Qual a sua opinião sobre casas espíritas receberem recursos públicos para o financiamento de atividades assistenciais e educacionais realizadas em suas dependências?
Vi situações em que os dirigentes sentiram-se obrigados a realizar convênios com o Estado. Entre fechar uma instituição ou receber dinheiro do Estado, a segunda opção é a preferível. A situação atingiu este ponto porque os dirigentes não planejaram adequadamente as fontes de recursos. O mais importante é que a instituição mantenha sua independência doutrinária diante do governo. Caso a instituição ainda não exista, o melhor é elaborar um bom plano para evitar recorrer ao financiamento público de pires na mão. Os órgãos de unificação poderiam criar mecanismos de colaboração e sustentabilidade para as instituições associadas. Em todo caso, acho que também precisamos superar alguns tabus sobre a questão das fontes de sustentação financeira das nossas atividades. Um ponto capital que eu não poderia deixar de mencionar é que a doutrina espírita assume uma posição libertária diante do Estado. Ela não deixa de reconhecer a sua necessidade, mas também não recomenda a dependência a ele. Entendo que o movimento espírita deva manter-se livre de compromissos ou imposições do Estado, e lutar pela emancipação das suas organizações e, através dos seus exemplos, pela emancipação da sociedade.

Na sua visão, que caminhos devemos tomar para que no futuro a questão da gestão das casas espíritas supere os desafios postos? 
Creio que um dos caminhos que devamos começar a trilhar é o da mudança dos modelos organizacionais das nossas instituições. Uma observação mais atenta revelará que nosso atual modelo não corresponde àquele imaginado pelo Codificador do Espiritismo. Por isso defendo que façamos uma releitura para buscar os seus fundamentos e contextualizá-los. Não se trata de uma tentativa de adaptar modelos anacrônicos, ou um retorno saudosista ao passado. Nosso modelo organizacional atual, além de estar distanciado do pensamento estratégico de Kardec, também está ultrapassado em diversos aspectos, pois assimilamos o patrimonialismo da sociedade em vez de propagarmos os valores espíritas. Importamos mais do que exportamos valores para a sociedade, de maneira que nessa troca estamos perdendo. Temos um modelo do século XX, mas precisamos de um para o século XXI. Antes tínhamos que lutar contra focos de resistência para promover, numa sociedade predominantemente agrária e conservadora e com fortes acentos católicos, a aceitação da doutrina espírita. As resistências já foram diluídas. Por isso, acredito que agora a prioridade seja propagar os valores espíritas na sociedade. Assim, acho que devemos trabalhar por um novo pacto federativo em que reforcemos a democracia interna e a autonomia das organizações, estimulando a colaboração interorganizacional, na forma de uma estrutura em rede de sistemas espíritas locais. A formação de dirigentes e de multiplicadores com conhecimentos das diversas áreas do conhecimento, treinados em centros de estudos doutrinários avançados. Finalmente, desenvolver sistemas de sustentabilidade econômica visando ao crescimento e manutenção das nossas organizações. Precisamos pensar, mas pensar diferente. Aplicar os princípios espíritas com criatividade, pois, como dizia Kardec, se Deus nos deu inteligência é para que façamos uso dela!

Fonte: Reproduzido em inteiro teor de o Consolador uma Revista Semanal de Divulgação Espírita


 

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